Uma das marcas mais fortes do discurso de Bolsonaro durante a campanha – e mesmo antes dela – foi a necessidade de desaparelhar ideologicamente o governo, acabando com a ocupação de cargos definida a partir da filiação político-partidária do escolhido. O futuro presidente afirmou em várias ocasiões que não aceitaria indicação partidária para a montagem do governo, e que suas escolhas seriam exclusivamente baseadas na competência e no conhecimento da área pelo ocupante. Teríamos um governo técnico, derrubando a prática esquerdo-petista de plantar em cada órgão um representante seu, independentemente de sua expertise ou know-how. Em várias ocasiões o futuro presidente acusou a esquerda petista de aparelhar ideologicamente o Estado. A última delas foi outro dia, quando afirmou que os médicos cubanos não passavam de um batalhão de agentes comunistas semeados nos mais diferentes rincões do país com a finalidade de doutrinar as massas e atraí-las para a ideologia marxista.
Vai morder a língua todo dia
Bolsonaro está comprovando a cada momento que daqui pra frente vai morder a língua um dia sim e outro também. Primeiro, porque no formato presidencialista de coalizão, não há como governar sem negociar com os partidos de sua base. E isso implica, sim, na distribuição de cargos. Desde que o diabo era menino sabe-se que a prática política implica na distribuição de cargos entre aliados – eu escrevi cargos, CARGOS, reforcem o negrito –, para manter a tropa unida e apaziguada. Sim, claro, o ideal seria que o eleito merecesse apoio livre e desinteressado. E tivesse liberdade absoluta para escolher tecnicamente sua equipe. Mas isso só ocorre na ficção de quem acredita que a vida é longa, o céu é perto e o mundo, uma maravilha. Vai ter de distribuir cargos, sim senhor. A menos que se desinvente a política tal como vem sendo praticada nas democracias desde a antiga Grécia pra cá. Ele próprio já começou a jogar água no incêndio iniciado em seu próprio partido, o PSL, que abriu o bué descontente com o caminhão de cargos entregues ao DEM em áreas de extrema relevância política, como a Casa Civil, a Saúde e a Agricultura. A senadora Soraya Thronicke, eleita pelo PSL em Mato Grosso do Sul, soltou o maior berreiro por ter tomado conhecimento pela imprensa da escolha de Tereza Cristina, do DEM, para pilotar a Agricultura.
Leia também
Quem entra em campo tem de jogar o jogo
Como se diz nos corredores do Congresso desde os tempos do Senado do Império, quem entra em campo tem de jogar o jogo. Se não jogar o jogo, Bolsonaro vai amargar traições e vacilos de sua base a cada votação de matéria de seu interesse.
Igualmente, o novo presidente não tem nem nunca teve como sustentar a outra afirmação – de que iria desideologizar e despartidarizar o governo, evitando as nomeações baseadas na inclinação político-ideológicas dos escolhidos, como acusa os governos petistas de ter agido. Na primeira ocasião, mordeu a língua e fez precisamente o que combatia e diz combater na esquerda petista. Em vez da competência e da isenção de Mozart Neves, diretor do Instituto Ayrton Sena, bandeou-se para o nome de Ricardo Vélez Rodríguez, um defensor dos golpistas de 1964, e o convidou para ocupar a pasta da Educação. Também, pudera: nem bem o nome de Mozart Neves foi posto na roda, as bancadas evangélicas bolsonaristas trataram de demonizá-lo sob a alegação de que é um crítico dessa excrescência apelidada de escola sem partido. Já Ricardo Rodríguez, além de defensor da gorilada de 64 que mergulhou o país em trevas durante mais de duas décadas, teve como padrinho a execrável figura de Olavo de Carvalho, um escritor que se auto-atribui o título de filósofo, ex-comunista e hoje protótipo mais fiel de um conservadorismo mofado, saudoso das botinas e das fardas verde-oliva.
PublicidadeCripto-anti-marxista. Diabeísso?
Para a estratégica pasta das Relações Exteriores, Bolsonaro escolheu um lunático que inventou um tal de “globalismo” que ninguém consegue definir que diabo possa ser. Um troço inexplicável mas de utilidade retórica, que nem o tal de “bolivarianismo” de Chávez, que nem consultando o tarô e os búzios de Madame Natasha a gente descobre o que é. O futuro chanceler Ernesto Araújo, outra indicação de Olavo de Carvalho, é um cripto-anti-marxista. Chegou a escrever que a Revolução Francesa foi inspirada em Marx, esquecido que o barbudo nasceu 30 anos depois dela… Logo, independente da competência ou mesmo da sanidade mental do escolhido, se é anti-marxista merece as bênçãos de Bolsonaro e tamos conversados.
E assim o mundo gira e a Lusitana roda. E assim o futuro governo vai sendo ideologizado pela direita mais truculenta, venal e burra, do mesmo jeitinho como até outro dia era ideologizado pelo fanatismo da esquerda lambuzada na corrupção. E assim as indicações para os cargos têm de agradar aos partidos de sustentação, que Bolsonaro garantiu que não faria. E assim o mito de pés de barro vai provando, dia sim e outro também, que de novo não tem coisa alguma. É apenas mais do mesmo, com o sinal trocado. Filme velho. Pior é que estamos trancados no cinema e temos de assistir a sessão até o final, seja lá quando termine e as luzes – finalmente – se acendam.
Ah, as luzes…
E olha: pelo jeito, o filme é um loooooooonga-metragem. E bota longa nisso. Não tem intervalos. O cinema não tem banheiros nem pipoca pra vender. E tudo indica que não vai terminar em happy end.