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A ideia em um segundo
O bicameralismo, elemento estrutural do sistema político brasileiro, por vezes sofre críticas pela sua lentidão. De fato, o escrutínio de duas câmaras sobre as propostas legislativas gera lentidão como consequência. Contudo, seu objetivo maior é avaliar com mais profundidade e pluralidade de olhares as proposições. Após 1988, variadas configurações de Poder Executivo, Senado Federal e Câmara dos Deputados deram o tom dos embates políticos e suas possibilidades de solução. Para o final do mandato de Jair Bolsonaro, espera-se mais um deles, antepondo maior ativismo de Arthur Lira ao apego de Rodrigo Pacheco à prudência.
Câmara dos Deputados e Senado Federal compõem o Poder Legislativo Federal. Em muitos casos analistas ressaltam a lentidão do sistema, já que uma proposta legislativa deve ser apreciada por duas casas. Diante de reformas legais ansiadas, o bicameralismo “atrapalha”.
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Ocorre que o bicameralismo torna mais lentas as decisões por sopesá-las. Atua ele assim dentro da lógica de freios e contrapesos e da defesa de direito e voz para o maior número de movimentos, os quais precisam de tempo, espaço e publicidade para apresentarem suas posições, algo por vezes impossível num processo célere demais.
Origens
A configuração bicameral no Brasil vem desde o surgimento do Império, na década de 1820. À época, a forma inglesa de governo dividido em Câmara dos Lordes e Câmara dos Comuns inspirou a Constituição outorgada por Dom Pedro I.Ao longo da República, a divisão bicameral permaneceu. Perdidas as formalidades aristocráticas, o sistema bicameral dos EUA serviu de modelo às nossas várias constituições republicanas. Em sociedades aristocráticas, o Senado era o local da distinção social, já nas repúblicas compõe a divisão dos poderes, um dos atores que se refreiam e controlam mutuamente.
Em vários países encontra-se o Senado, embora com prerrogativas limitadas, podendo-se citar aqui Alemanha e França como exemplos.
A América Latina e os Estados Unidos, por sua vez, têm forte presença de bicameralismos e, mais importante, são nações em que o papel da Câmara Alta é mais forte. A força das Câmaras Altas deve-se ao extenso rol de prerrogativas dos Senados, que muitas vezes igualam ou até superam ao das Câmaras Baixas. A esta igualdade de prerrogativas denomina-se bicameralismo simétrico.
Consociativismo e desconfiança
O Brasil, com seu presidencialismo, bicameralismo, federação e uma grande pulverização de partidos representados no Legislativo, exige a concordância de muitos participantes para que uma ideia seja efetivada em lei. Em termos formais, diz-se que o sistema apresenta muitos “atores com poder de veto”. É considerado assim um sistema político consensual, em oposição ao majoritário.
O sistema majoritário, em que exemplares são o Reino Unido e os EUA, define-se por estruturas de poder em que o grupo majoritário tem condições de atuar excluindo os minoritários, num sistema que se pode chamar de “o vencedor leva tudo” – pois os vencedores da eleição controlam todos os cargos de mando.
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 tanto dificultou alterações constitucionais pelo legislador ordinário quanto exigiu a tramitação bicameral para a maioria das proposições.
Uma das explicações mais fortes para o nosso bicameralismo simétrico é a desconfiança do legislador sobre o que farão as legislaturas futuras. A simetria impede a velocidade e a profundidade de mudanças, pois só o que realmente conta com amplo apoio consegue aprovação em ambas as casas legislativas. É uma defesa do status quo.
Considerada a extensão e a profundidade da Constituição de 1988, vê-se que as amarras a mudanças futuras demonstram a desconfiança dos constituintes na manutenção de nosso pacto civilizatório.
O bicameralismo hoje
Nos últimos anos, o bicameralismo brasileiro exerceu papeis interessantes, em geral como freio aos impulsos do presidente da República ou do presidente de uma das casas legislativas.Fernando Henrique Cardoso conseguiu, com uma ampla coalizão, passar reformas constitucionais que exigiram o acordo da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Seu governo caracterizou-se como de reformas profundas, sobretudo diminuindo a intervenção do governo na economia.
Lula conseguiu montar base confortável na Câmara dos Deputados, contudo enfrentou muito mais dificuldade no Senado Federal. Em boa medida, tais dificuldades advieram da forma de composição da Câmara Alta. Com mandatos de oito anos, muitos senadores elegem-se em condições diversas daquelas que encontram nos últimos anos de mandato. Isto aconteceu com Lula: o Senado que ele enfrentou ainda se compunha de muitos membros eleitos durante o governo FHC. Ganhou notoriedade, por exemplo, a rixa entre Lula e o senador Artur Virgílio (AM), do PSDB. Não por outras razões, a maior derrota legislativa do governo petista foi a não aprovação da CPMF pelo Senado.
No governo Dilma a maior questão política foi a eleição do deputado Eduardo Cunha (MDB-RJ) para a presidência da Câmara. Naquele momento estabeleceu-se uma queda de braço entre Executivo e Legislativo. Surgiram como ideias e propostas na Câmara Baixa mudanças eleitorais profundas e mesmo a instituição do parlamentarismo. Embora Eduardo Cunha tivesse enorme força na Câmara, muito de seus ímpetos foi contido pelo Senado.
Bolsonaro enfrenta situação cambiante. Nos primeiros dois anos de seu mandato o Senado mostrou-se mais amistoso, sob a liderança de Davi Alcolumbre (DEM-AP), enquanto a Câmara presidida por Rodrigo Maia (DEM-RJ) trabalhava com mais autonomia. Agora em 2021, os papeis inverteram-se, com a Câmara sob Arthur Lira (PP-AL) mais alinhada ao Planalto e o Senado mostrando-se mais arredio.
Esta dinâmica explica em alguma medida as ocorrências atuais. Na Câmara os processos de impeachment não avançam, enquanto o Senado Federal implantou a CPI da Covid que desgasta bastante o governo.
Propostas de mudança eleitoral da Câmara, como por exemplo a volta das coligações proporcionais, foram barradas pelo Senado. O Código Eleitoral, ousada iniciativa da Câmara Baixa que pretende reformar integralmente as leis eleitorais, deve ser criteriosa e lentamente apreciado pelo Senado, impedindo sua aplicação nas eleições de 2022.
Outro exemplo da dinâmica entre as duas casas é a reforma do Imposto de Renda aprovada pela Câmara. Após conseguir construir um texto aceitável, em duras negociações, a proposta chegou ao Senado e deve também sofrer escrutínio detalhado e longo.
Outro exemplo de atuação do Senado é a recusa de Davi Alcolumbre, presidente da sua Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, em pautar a indicação de André Mendonça para o Supremo Tribunal Federal (STF). Nos Estados Unidos, ficaram notórios episódios semelhantes – a última indicação de Obama para a Suprema Corte ficou mais de um ano sem ser analisada e acabou não se efetivando. No caso brasileiro, ainda que motivado por questões mais personalistas do que situacionais (nos EUA foi uma clara tática de obstrução oposicionista), trata-se de mais uma dimensão em que o bicameralismo tem contribuído para frear o Executivo.
Lira tem pressa. Pacheco aparenta mais apego à prudência. Porém, além de comandar a Câmara Alta, o senador mineiro tem um poder a mais: preside o Congresso Nacional. Em tempos de rompantes antidemocráticos, freia incursões como a medida provisória editada por Bolsonaro, às vésperas dos atos do Sete de Setembro, e que dificultava a remoção de conteúdos das redes sociais. Pacheco devolveu a MP ao Executivo.
Os meses finais do governo Bolsonaro devem se marcar, entre outras coisas, pelo choque entre essas duas lógicas. Os exemplos trazidos dão clareza à dinâmica de funcionamento do bicameralismo simétrico e forte brasileiro. Se alguns se queixam da falta de velocidade nas mudanças, devemos atentar também que esta lentidão garante maior debate e a expressão da sociedade sobre as propostas, além de tornar o status quo mais estável, o que em alguns casos é positivo.
Termômetro
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Chapa quente
Assessorado por grupos de juristas, o relatório final da CPI da Covid está perto de ficar pronto. E tudo indica que será robusto, não apenas em número de páginas mas nas imputações que fará especialmente ao presidente Jair Bolsonaro, mas também a outros personagens. O último episódio revelado, sobre como a Prevent Senior usou pacientes como cobaias do chamado tratamento precoce com o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, é forte exemplo da gravidade que será relatada em seu conteúdo.
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Geladeira
Não apenas pela hipótese de vir a ser ofuscada pelo relatório final, mas também por todas as razões analisadas nesta edição do Farol, as reformas em tramitação na Câmara e no Senado enfrentam dificuldades que podem deixá-las em banho maria. Na Câmara, a reforma administrativa tenta encontrar o ambiente para ser votada no plenário depois de todas as dificuldades que teve para passar na comissão especial. E no Senado também não parece simples o avanço da mudança no imposto de renda e da proposta mais ampla de reforma tributária.
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O Farol Político é produzido pelos cientistas políticos e economistas André Sathler e Ricardo de João Braga e pelos jornalistas Sylvio Costa e Rudolfo Lago. Edição: Rudolfo Lago. Design: Vinícius Souza.
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