Ao mesmo tempo em que se intensificam os arroubos antidemocráticos da família Bolsonaro, preocupa – e são muitas as pessoas que comentam – a dificuldade do Congresso Nacional em reagir articuladamente à tamanha crise que incendeia as instituições da República. É fato que o governo tem a maioria da bancada no Senado e na Câmara, mas os graves problemas do Brasil exigem que tanto o presidente quanto os parlamentares, inclusive os da sua família, atuem com a dignidade, a honra e o decoro de seus cargos.
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Lembrando alguns exemplos da obra de Jair Bolsonaro, seus filhos incluídos, o senador Flávio Bolsonaro, investigado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa (#CadêOQueiroz?), foi diretamente beneficiado pela decisão do ministro Dias Toffoli de suspender os processos em que questionava o uso de dados fiscais sem autorização prévia da Justiça. Estranhamente, o presidente do STF atuou por dois anos em um caso que também tratava de compartilhamento de dados fiscais sem autorização judicial, mas só viu motivos para determinar a suspensão de investigações após analisar o caso do filho 01 do presidente. OK, no momento é impossível afirmar se houve ou não tráfico de influência no caso, mas o que dizer da responsabilidade do presidente ao permitir que seu filho 02, Carlos, vereador carioca, continuamente use a conta pessoal de Jair Bolsonaro no Twitter para atacar instituições, setores da sociedade e seus desafetos políticos? Ou ainda, da sua proposta de indicar o seu 03, Eduardo Bolsonaro, deputado federal, como embaixador junto a Washington, sabidamente sem experiência em negociações diplomáticas ou na administração de contenciosos, mesmo informado de que tal indicação caracterizaria descumprimento de normativas (Lei nº 8.112/1990, Súmula Vinculante nº 13 do STF, Decreto nº 7.203/2010) que barram o exercício do nepotismo?
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Para além de seus filhos, a lista de problemas causados pelo próprio presidente é extensa e inclui falsas acusações públicas a ONGs e lideranças indígenas, grosserias e descomposturas no trato de autoridades (governadores do Nordeste e presidentes incluídos), ataques às mulheres, gays, negrxs, índixs e à imprensa. Uma lista, aliás, que nada surpreende diante da sua capacidade de instaurar ódios, seu apreço por ditadores, assassinos, milicianos e torturadores.
Se nada disso e se nenhum desses fatos, isoladamente, foi capaz de trazer consenso ao Parlamento, a pergunta que não quer calar é: quantos outros indícios de quebra de decoro e nepotismo serão necessários até que se encontre uma forma de sanar este surto que parece não ter fim? A cada manhã, acordamos nos perguntando qual será o ataque do dia ou quais as cenas do próximo capítulo.
Não sendo o Brasil uma novela ou um filme de terror, a realidade pesa e é sentida na pele das pessoas, nos territórios, na ansiedade de 12 milhões de pessoas desempregadas, nos mais de cinco milhões que passam fome e que, sem futuro, só veem um presente onde o presidente cria novos – e desnecessários – problemas.
PublicidadeTalvez não faltem motivos, mas um Congresso Nacional de fato comprometido com as pautas sociais e ambientais. Porque soluções existem, como prova o Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030, que apresenta 150 propostas para o desenvolvimento sustentável do Brasil.
Espera-se, portanto, num contexto onde o AI-5 volta em pesadelos, que o Congresso abra um debate sobre a responsabilidade do presidente do País na condução e agravamento de tantas crises. Espera-se decoro, no mínimo. Porque há um número grande de pessoas adultas e jovens que, mesmo divergindo em muitos temas, não têm como normalizar essa anormalidade política em que vivemos, e nenhuma ameaça de AI-5 poderá calar tantas vozes. Além disso, mesmo a virulenta ameaça de Eduardo Bolsonaro – que demanda ação no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados – não pode nos distrair do epicentro do furacão.
Vale lembrar que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, antes mesmo dos escândalos mais recentes, já tinha, pelo menos, dois pedidos de impeachment “em análise”, além de um terceiro arquivado sumariamente. Há partidos e juristas estudando outras possibilidades, mas vai ser preciso muita vontade política para enfrentar o capital político-corporativo do presidente, que já observa seu apoio popular se deteriorar em vários setores da sociedade.
A crise política nacional se agrava, mas é hora de cuidar do Brasil, porque nossa história não se inicia em 2016 ou 2018. Temos valores diversos, direitos conquistados e uma Constituição Federal a seguir. Somos uma sociedade plural, que mesmo com pouco mais de um século republicano e três décadas de democracia já aprendeu a lição básica: um país inteiro como o nosso, com mais de duzentos milhões de pessoas, não pode caber em um obscuro negócio familiar.
O conjunto da obra exige resposta, sim. A República merece respeito.