David Emanuel de Souza Coelho *
O tema do duplo já foi extensamente explorado na literatura. Dostoievski já o explorara em seu livro clássico e recentemente foi a vez de Saramago seguir a temática.
A persona duplicada é a expressão de um sujeito que busca romper com seus limites sociais e, incapaz de fazê-lo, acaba por criar um alter ego artificial, o qual irá realizar suas ambições.
Outra, no entanto, é a dinâmica da dupla lógica. Esta não visa a cisão do indivíduo, mas a duplicidade da prática e do discurso. Não é uma forma de se emancipar, mas de conduzir ações contraditórias em um mesmo contexto e sentido.
Aristóteles define contradição como sendo afirmar qualidades diferentes para uma coisa sobre um mesmo aspecto e ao mesmo tempo. Isso do ponto de vista da contradição teórica; a contradição prática, ou ética, é um problema mais difícil.
Na verdade, a filosofia ética do autor grego é baseada na virtude e não no dever, o que torna a noção de amoralismo virtualmente sem sentido. O importante é saber executar o melhor a depender do contexto.
Porém, ele reconhece a existência da injustiça como sendo tratar desigualmente os iguais e igualmente os desiguais, estabelecendo a existência de uma dupla moralidade: uma para os nobres, outra para os inferiores.
Na verdade, Aristóteles pode tranquilamente afirmar uma dupla razão prática porque para ele – como em geral para o mundo antigo – não há nenhum problema em reconhecer a desigualdade natural dos seres humanos. Há uma racionalidade prática para os senhores e outra para os escravos, essencialmente diversa da dos homens livres. No mundo antigo, a dupla lógica é aceita abertamente. Aos nossos olhos, é como se no mundo antigo regesse uma razão cínica.
Muito diversa é a visão prevalente no mundo contemporâneo. Aqui, o princípio burguês da igualdade rege nossa mentalidade, sendo defendida não a desigualdade, mas a igualdade natural dos seres humanos.
Porém, sabemos perfeitamente ser esse discurso da igualdade uma realidade concreta muito longínqua, sendo a realidade dominada pela iniquidade.
O resultado desta contradição entre realidade e teoria é a existência, também no mundo contemporâneo, de uma dupla lógica, mas uma dupla lógica negada in abstracto, o que gera uma razão hipócrita, sendo a desigualdade estabelecida não pela estirpe, mas pelo poder do dinheiro.
A razão hipócrita, portanto, é a normalidade do mundo burguês, cindido na realidade, mas unido na teoria.
Jair Bolsonaro e sua turma, portanto, não inventaram a razão hipócrita. No entanto, como sempre, a extrema direita leva ao paradoxo o que é prática corrente na sociedade burguesa, escancarando o que em regimes moderados é apenas pressentido.
A imoralidade é a marca fundamental da extrema direita, pois só assim pode levar adiante a execução dos projetos da plutocracia. Seu único valor defendido é o da conquista e manutenção do poder. Por isso, a desumanidade é sua marca principal, não hesitando em praticar os mais sórdidos crimes para conseguir seu objetivo.
Justamente por ser amoral, ela é chamada pela burguesia para assumir o timão do Estado em momento de intensa crise social, quando é preciso enviar às favas todo escrúpulo de moralidade e implantar, a ferro e fogo, a lógica excludente do capitalismo.
No entanto, a imoralidade da extrema direita não se manifesta apenas em seus crimes de ódio e contra a humanidade, mas também nos crimes comuns contra o patrimônio público e pessoal. Um governo de extrema direita não é apenas profundamente violento, é também profundamente corrupto.
Enquanto autêntico representante da extrema-direita, o futuro governo Bolsonaro expressa bem a razão hipócrita, impondo uma duplicidade lógica em sua prática. Vejamos como isso se dá, primeiro em relação à corrupção.
Corrupção é o segundo nome do capitalismo. A exploração do ser humano pelo outro e a lógica absoluta do dinheiro é o fundamento amoral de toda relação desta forma de sociedade. Contudo, a moralidade oficiosa decreta que tudo deve ser feito de forma limpa, seguindo abstratos padrões de conduta.
Na maior parte do tempo, a plutocracia fecha os olhos às práticas desonestas disseminadas em seu próprio seio, mas, em algum momento e por algum motivo, decide fazer uma “limpa”, dirimindo excessos. Mãos Limpas, na Itália, e Lava Jato, no Brasil, são exemplos disso.
Não importa aqui os motivos dos agentes usados na “limpa”. Podem ser idealistas ou carreiristas, o que importa mesmo é o resultado.
O combate à corrupção, porém, não pode durar eternamente. Uma hora ou outra o processo atinge um limite, pois a completa moralização do sistema só poderia significar sua supressão. Em algum instante, forma-se o entendimento de que é preciso tolerar os iníquos e tudo volta à normalidade do banditismo anterior.
Bolsonaro aproveitou-se de um destes momentos de combate à corrupção e soube se auto promover enquanto apoiador da Lava Jato e inimigo da roubalheira. No entanto, o próprio – como vem sendo demonstrado – é ele próprio um corrupto, embora um corrupto provinciano. Além dele, seus familiares e membros de seu governo também encontram-se afundados na corrupção, o que explicita a razão hipócrita da dupla lógica.
Mas, certamente, a expressão maior desta racionalidade hipócrita é dada na figura de Sérgio Moro. Impiedoso com a corrupção petista, não se vexou de sair em defesa de Onyx Lorenzoni, Paulo Guedes e do próprio Bolsonaro. O outrora cioso juiz moralista, o qual considerava caixa dois mais grave que a apropriação indébita, agora saca sua lógica relativística em defesa do chefe e dos colegas.
Sem dúvida, trata-se de exemplar da lógica hipócrita, a mesma que faz Bolsonaro e seus filhos se calarem diante de questionamentos da imprensa em torno das denúncias, enquanto ficam loquazes ao atacar a corrupção do PT.
Contudo, a razão hipócrita não está apenas aí. O mesmo Bolsonaro e seus filhos adoradores da ditadura militar, exaltadores da tortura e idolatradores do facínora Brilhante Ustra não ficam nem um pouco vexados em defender a democracia na Venezuela e em Cuba. A hipocrisia é tamanha a ponto de Eduardo Bolsonaro – o qual já posou para foto usando camisa com a foto de Ustra – defender a realização em solo brasileiro de um tribunal para julgar crimes contra a humanidade cometidos em Cuba!
Na verdade, a clara contradição de apoiar crimes contra a humanidade em território nacional e condená-los fora nem chega a enrubescer a família Bolsonaro. Não há nem mesmo uma tentativa discursiva de compatibilizar o duplo discurso, ele é afirmado de forma natural. Dito de outro modo, a dupla lógica de defender a tortura para os inimigos e a os direitos humanos para os amigos é expressão plena da razão hipócrita, agora desnuda de qualquer verniz conciliador.
No campo da economia, a razão hipócrita também se manifesta com a política abertamente anti-trabalhador e pró-capitalista de Paulo Guedes. Em outras épocas, a política econômica de Paulo Guedes seria justificada como sendo em favor do trabalhador ou do país, agora sua facciosidade é assumida na crueza da frase de que “é difícil ser patrão no Brasil”.
A razão hipócrita no governo Bolsonaro é a própria prática dupla, sem racionalidade conciliadora. A lógica diferente para os de baixo e os de cima é feita sem escrúpulos, com justificativas aberrantes ou silêncios reveladores. Muitas vezes, a contradição assume ares fanfarrônicos, como defender o “Brasil acima de todos” e bater continência para um membro do quarto escalão do governo americano.
Com Bolsonaro, a razão hipócrita desveste-se de suas máscaras de civilização e mostra-se abertamente enquanto dupla lógica: liberdade completa aos poderosos e subjugação radical ao povo. O fato do futuro presidente neofascista possuir um intelecto mínimo é uma vantagem para o processo, pois não há perda de tempo tentando racionalizar a contradição, ela é simplesmente assumida e levada a cabo. Não se pensa, se faz.
O regime de extrema direita, porém, é de difícil manutenção justamente porque a exacerbação da razão hipócrita torna a vida social difícil. A imoralidade no topo do Estado acaba funcionando como um difusor, levando à generalização da inobservância da moral em toda sociedade. Por isso mesmo, a extrema direita sempre parte para um regime ditatorial, pois apenas através do estado de exceção é possível garantir a ordem social enquanto no topo se pratica a desordem.
Esperemos que Jair Bolsonaro não chegue a este nível com o desdobramento de sua razão hipócrita.
* Bacharel e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde atualmente cursa o doutorado. É colunista do site Naufrago da Utopia, de Celso Lungaretti.
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