Em 2020, o mundo foi sacudido pela pandemia da covid-19. O novo coronavírus oriundo da Ásia, até 5 de março de 2021, em escala planetária, infectou 116.341.687 pessoas e produziu 2.583.675 vítimas fatais, segundo o Worldometer. No Brasil, até o dia 4 de março de 2021, 260.970 pessoas pereceram pela ação do vírus e foram confirmados 10.793.732 casos de infecção, segundo o Ministério da Saúde.
No final de fevereiro e início de março deste ano de 2021, o número de mortes e infecções explodiu no Brasil. No dia 3 de março, a quantidade de óbitos diários chegou a triste e inédita marca de 1.910 brasileiros, segundo o Ministério da Saúde. Existe uma crescente crise de falta de leitos em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) nas principais cidades brasileiras. Medidas de restrições de atividades econômicas se espalham pelo País definidas pelos governos regionais e locais. O governo federal insiste, fugindo de suas graves responsabilidades, em encontrar culpados no Supremo Tribunal Federal (STF), Congresso Nacional, governadores, prefeitos e fornecedores de vacinas. A situação é dramática e as perspectivas, de curto e médio prazos, não são as melhores.
Entre os atingidos, os assintomáticos e aqueles com sintomas leves e moderados são a grande maioria. O número de casos mais graves, que reclamam internação hospitalar, são menos numerosos, mas significativos. O rol dos sintomas observados é consideravelmente extenso e varia para cada caso (pessoa) em intensidade e duração. Entre os sintomas estão (sem ordem de frequência ou gravidade): a) febre; b) tosse seca; c) cansaço; d) dores e desconfortos; e) dor de garganta; f) diarreia; g) conjuntivite; h) dor de cabeça; i) perda de paladar ou olfato; j) erupção cutânea ou descoloração dos dedos das mãos ou dos pés; k) dificuldade de respirar ou falta de ar; l) dor ou pressão no peito e m) perda de fala ou movimento.
O vírus apresenta consideráveis singularidades. Atualmente, o noticiário está dominado pelas referências às mutações ou variantes e a eficácia maior ou menor das vacinas desenvolvidas em relação às novas cepas. As vacinas contra a covid-19 formam um capítulo a parte. São dezenas em desenvolvimento ou uso efetivo. As tecnologias manuseadas passam das clássicas a algumas inéditas. O exíguo tempo de desenvolvimento e testes acelerados acentuam uma considerável desconfiança em relação aos imunizantes.
Além das vacinas, várias ações em torno da pandemia estão envoltas em acesas polêmicas. Uma mistura complexa de evidências científicas (mais ou menos fortes) com interesses políticos e econômicos contrapostos tornam explosivos temas como: a) tratamento precoce (e as drogas a serem utilizadas); b) isolamento social (natureza, duração, eficiência, etc); c) obrigatoriedade do uso de máscaras e d) obrigatoriedade do uso de imunizantes.
Parece fora de dúvida, diante de um noticiário que mostra inúmeras iniciativas de isolamento social definidas por Estados, pelo Distrito Federal e por Municípios, a presença de uma preocupante “segunda onda” de infecções no Brasil. Fala-se também numa “terceira onda”, sobretudo na Europa. As reinfecções parecem, pelos vários registros da grande imprensa, um dado da realidade a ser devidamente considerado.
Pelo visto, a pandemia da covid-19 e seu enfrentamento pelos governos e pela sociedade (no plano das organizações e do cidadão) é algo que estará presente por um bom tempo (quanto tempo?).
No Brasil, além da imensidão de problemas técnicos, administrativos, políticos e econômicos relacionados com o enfrentamento do problema, temos uma peculiar dificuldade adicional. Trata-se de como articular ou coordenar, à luz da Constituição e da legislação pertinente, a atuação dos vários níveis de governo dentro da Federação. Afinal, “a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição” (art. 18).
Nos arts. 21 a 25, 30, 32, parágrafo primeiro e 34 do Texto Maior, o constituinte desenhou um complexo sistema voltado para regular o exercício das competências dos inúmeros entes estatais integrantes da Federação brasileira.
Percebe-se que foram apartadas as competências legislativas e as executivas (ou administrativas). No campo da produção de leis, existem explicitamente as matérias: a) entregues privativamente à União e b) atribuídas concorrentemente (ou conjuntamente) a todos os entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). O termo “privativamente” no art. 22 da Constituição, definidor das competências legislativas da União, está bem posto. Não se trata de competência exclusiva (indelegável) por conta da faculdade inscrita no parágrafo único do mesmo art. 22. Por outro lado, a ausência de menção aos Municípios no art. 24 da Constituição, definidor das competências concorrentes de todos os atores da Federação, não afasta a atuação desses últimos por força do disposto no art. 30, inciso II, da Carta Magna.
No âmbito da legislação concorrente, a União fixa normas gerais garantindo o tratamento uniforme da matéria em todo território nacional. Cabe aos Estados, Distrito Federal e Municípios suplementar as definições presentes nas normas gerais. Embora a Constituição mencione expressamente “lei federal de normas gerais” (art. 24, parágrafos terceiro e quarto), trata-se, neste caso, de lei nacional.
A lei nacional é uma categoria jurídica singular, sequer mencionada expressamente na Constituição. Parece, só parece, que não existe. Integra um plano hierárquico normativo superior aos planos federal, distrital, estadual e municipal. Eis um exemplo para esclarecer. O Código Tributário Nacional (CTN), veiculado pela Lei n. 5.172, de 1966, é uma lei nacional, como a própria denominação aponta. Suas normas gerais devem ser obedecidas pelas leis de todos os entes da Federação. Assim, como o CTN define o prazo de prescrição tributária em 5 anos, uma lei federal, estadual, distrital ou municipal não pode estabelecer lapso temporal diverso.
Na seara das competências administrativas ou executivas, temos os assuntos: a) sob responsabilidade privativa da União e b) de competência comum de todos os entes estatais. Admite-se, na forma de leis complementares, a fixação de normas de colaboração entre os entes da Federação visando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (art. 23, parágrafo único, da Constituição).
As competências administrativas comuns e as legislativas concorrentes marcam a presença de um “federalismo cooperativo” no Brasil. Admite-se que só uma ação planejada, coordenada e uniforme pode efetivar da forma mais eficiente as políticas públicas realizadoras dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, notadamente: a) construir uma sociedade justa e solidária; b) garantir o desenvolvimento nacional; c) erradicar a pobreza e a marginalização; d) reduzir as desigualdades sociais e regionais e e) promover o bem de todos (art. 3o. da Constituição).
O princípio da predominância do interesse norteia a distribuição das competências entre a União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios. Assim, os assuntos de interesse nacional, incluídos aqueles que reclamam uniformidade de tratamento em todo território nacional, ficam reservados à União. Já as matérias de interesse regional cabem aos Estados e ao Distrito Federal. Os temas de interesse local ficam reservados aos Municípios e ao Distrito Federal. Quando a Constituição, no art. 30, inciso I, estabelece que compete aos Municípios legislar sobre assuntos de interesse local, explicita o princípio em questão.
Cumpre registrar que a Constituição, no art. 102, inciso I, alínea “f”, fixou a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, originariamente, as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal, ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta.
No âmbito do federalismo cooperativo brasileiro, cuidar da saúde é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 23, inciso II da Constituição). A proteção e defesa da saúde compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios como atividade legislativa concorrente (art. 24, inciso XII da Constituição). Cabe, ainda, ao Município prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população (art. 30, inciso VII da Constituição).
Especificamente para o combate à pandemia da covid-19 foi editada a Lei (nacional) n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre “as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Esse diploma legal elencou, exemplificativamente, providências como: a) isolamento; b) quarenta; c) determinação de realização compulsória de vacinação e d) restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País. Estabeleceu, ainda, que boa parte das ações a serem adotadas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios reclamavam intervenção autorizativa de órgãos da União, em especial o Ministério da Saúde.
Diante dessas definições legais, o Supremo Tribunal Federal foi chamado a avaliar a constitucionalidade da Lei n. 13.979/2020 à luz das regras relacionadas com a Federação brasileira. No julgamento das cautelares nas ADINs 6341 e 6343, a Corte Maior concluiu que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não precisam de autorização ou atuação prévia da União para adotarem medidas voltadas para “cuidar da saúde” (art. 23, inciso II da Constituição).
Estes trechos das ementas dos julgados nas ADINs 6341 e 6343, respectivamente, são esclarecedores:
“O exercício da competência da União em nenhum momento diminuiu a competência própria dos demais entes da federação na realização de serviços da saúde, nem poderia, afinal, a diretriz constitucional é a de municipalizar esses serviços”.
“5. Não compete, portanto, ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas como a imposição de distanciamento ou isolamento social, quarentena, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais e à circulação de pessoas, entre outros mecanismos reconhecidamente eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos, como por exemplo, os estudos realizados pelo Imperial College of London, a partir de modelos matemáticos (The Global Impact of covid-19 and Strategies for Mitigation and Suppression, vários autores; Impact of non-pharmaceutical interventions (NPIs) to reduce covid-19 mortality and healthcare demand, vários autores). 6. Os condicionamentos imposto pelo art. 3º, VI, “b”, §§ 6º, 6º-A e 7º, II, da Lei 13.979/2020, aos Estados e Municípios para a adoção de determinadas medidas sanitárias de enfrentamento à pandemia do covid-19, restringem indevidamente o exercício das competências constitucionais desses entes, em detrimento do pacto federativo”.
Na mesma linha foi adotado o referendo do plenário do STF na ADPF 672, convertido em julgamento de mérito. Ao referendar as cautelares concedidas na ADPF 770 e na ACO 3451, o STF mais uma vez prestigiou o entendimento destacado. Ficou assentado:
“… que os Estados, Distrito Federal e Municípios (i) no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença, poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham, previamente aprovadas pela Anvisa, ou (ii) se esta agência governamental não expedir a autorização competente, no prazo de 72 horas, poderão importar e distribuir vacinas registradas por pelo menos uma das autoridades sanitárias estrangeiras e liberadas para distribuição comercial nos respectivos países, conforme o art. 3°, VIII, a , e § 7°-A, da Lei 13.979/2020, ou, ainda, quaisquer outras que vierem a ser aprovadas, em caráter emergencial, nos termos da Resolução DC/ANVISA 444, de 10/12 /2020”.
Cumpre registrar que em nenhum momento a União foi excluída, nem poderia ser, das enormes responsabilidades relacionadas com o combate à pandemia. Na ementa do julgado na ADIN n. 6343 consta: “3. A União tem papel central, primordial e imprescindível de coordenação em uma pandemia internacional nos moldes que a própria Constituição estabeleceu no SUS”. Na ementa do julgado na ADPF n. 672 verificamos: “4. O Poder Executivo federal exerce o papel de ente central no planejamento e coordenação das ações governamentais em prol da saúde pública”. Observe-se, ademais, que a iniciativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios em relação à aplicação de vacinas, tratadas na ADPF 770 e ACO 3451, pressupõe falha na atuação da União comprometedora das ações de saúde necessárias ao combate à pandemia.
Assim, é viável afirmar que no combate a pandemia da covid-19, uma das mais graves ocorrências sanitárias dos últimos tempos, cabe a União planejar e coordenar as ações voltadas para resguardar a saúde da população e aos demais entes estatais compete executar o planejamento, sem prejuízo de medidas tomadas por iniciativa própria, notadamente em função de situação peculiar/singular observada em cada região ou local (número de leitos disponíveis, aumento ou diminuição da quantidade de casos, etc).
Esse desenho institucional das competências federativas reclama elevado espírito público, enorme capacidade de ação colaborativa e profunda competência técnica em prol da saúde de todos, inclusive para superar dificuldades e lacunas do desenho normativo constitucional e legal. Esses artigos de natureza política parecem profunda e perigosamente raros no delicadíssimo momento atual, sobretudo no plano do governo federal.
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