Luiz Alberto dos Santos *
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou, no dia 7 de dezembro de 2016, substitutivo da relatora, deputada Cristiane Brasil, ao Projeto de Lei nº 1.202, de 2007, do deputado Carlos Zarattini, que objetiva regulamentar o lobby no âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo Federais.
Após quase dez anos de tramitação, e tendo a matéria sido aprovada, sem emendas, na Comissão de Trabalho, de Administração e de Serviço Público da Câmara em 2008, o projeto de lei deverá ser apreciado pelo Plenário da Câmara, uma vez que trata da regulamentação de tema relacionado a direitos individuais.
Embora lastreado em antigo e extenso debate, e justificado pela urgência e relevância do tema, dadas as reiteradas situações críticas envolvendo a prática de crimes de tráfico de influência e corrupção que são reputados como atividade de lobby pela mídia, pela sociedade e pelos próprios envolvidos, o projeto, na forma aprovada pela Comissão, padece de sérios equívocos e fragilidades que praticamente o tornam uma peça decorativa, que pouco ou nada contribuirá para atender às recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o tema e as necessidades do sistema político-administrativo brasileiro.
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Segundo a OCDE, a regulamentação do lobby, fenômeno que vem se intensificando no mundo, em particular nos países desenvolvidos, deve atender a alguns requisitos de validade.
A Resolução do Conselho da OCDE de 18 de fevereiro de 2010, reconhecendo a necessidade de que cada país adote a solução adequada ao seu contexto, mas propõe, entre outras medidas, uma definição de lobbying e de lobista abrangente, a adoção de regras que assegurem equidade no acesso aos decisores e mecanismos de registro e controle das atividades exercidas e prestação de contas dos lobistas que sejam facilmente acessáveis pelo público em geral e pelas autoridades, permitindo que tais atividades sejam sujeitas a permanente escrutínio, para, assim, atingir o objetivo de assegurar a transparência e a integridade pública no âmbito dessas atividades, em favor da preservação da confiança nas instituições e agentes públicos.
PublicidadeLamentavelmente, quase 30 anos após a apresentação ao Congresso da primeira proposição legislativa destinada a regulamentar o lobby no Brasil, é forçoso reconhecer que a montanha está em vias de parir, afinal, um rato.
Com efeito, o texto aprovado não prevê um sistema de credenciamento ou registro obrigatório dos lobistas, mas facultativo, o que impede que, para ocorrerem à luz do dia, os contatos de lobby sejam sujeitos a mecanismos de controle sobre a sua atuação que, inclusive, são fundamentais para que os que agirem nas sombras e cometam impropriedades sejam afastados dessa atividade. Soa, assim, inócua a previsão de que será negado o registro – que os lobistas não são obrigados a requerer – ao agente de relações governamentais que tenha sido condenado por ato de corrupção, tráfico de influência, concussão, advocacia administrativa ou improbidade administrativa, enquanto durarem os efeitos da condenação.A definição de quem é lobista é gravemente prejudicada. A uma, porque muda-se o foco da lei de regulamentação do lobby para a simples disciplina da “atividade de representação de interesses nas relações governamentais”; a outra, porque se limita o escopo dessa disciplina às relações entre Administração e administrado ou processos decisórios que impliquem sugestão, modificação, interpretação, revogação ou extinção de norma jurídica. Ou seja, estão excluídos da regulamentação todos os demais processos de tomada de decisão onde o lobby é comum, intenso e, frequentemente, espúrio, em especial quanto à formulação ou implementação de políticas públicas, pois a busca da influência nessas atividades frequentemente se confunde com o tráfico de influência e a busca de vantagens indevidas.
A prestação de contas dessas atividades aos órgãos de controle, mediante relatórios periódicos que sejam publicados on line, é totalmente ignorada e omitida.
Em outra direção, porém, a lei assegura, aos lobistas, que passam a ser denominados “profissionais de relações governamentais”, prerrogativas especiais de atuação, mediante a garantia do direito de apresentar análises de impacto de proposição legislativa ou regulatória; estudos, notas técnicas, pareceres e similares, com vistas à instrução do processo decisório; sugestões de emendas, substitutivos, requerimentos e demais documentos no âmbito do processo legislativo ou regulatório; e sugestão de requerimento de realização ou de participação em audiências públicas.
Ainda que tais propostas não tenham caráter vinculativo, é nítida a mudança de escopo da norma, que passa, de meio de controle, escrutínio e transparência do lobby, a veículo de seu empoderamento na busca da influência.
Nenhuma norma do projeto opera no sentido da garantia da igualdade de acesso, ou seja, não se estabelece qualquer regramento que obrigue o decisor a, ouvido um grupo de interesse específico, oferecer igual oportunidade de acesso ao interesse contraposto, como é necessário numa sociedade pluralista e democrática. Nem há qualquer regramento que atinja a atuação dos lobistas governamentais, ou seja, aqueles que representam os interesses de órgãos e entidades da Administração Pública, e que já contam com prerrogativas especiais de acesso aos decisores públicos.
É fato que um sistema de regulação do lobby deve ser ajustado às possibilidades de sua implementação e compliance pelos envolvidos, às garantias constitucionais do direito de associação e de petição aos poderes públicos, e não pode se converter em uma barreira à atuação legítima de representação de interesses, que é inerente à democracia.
Mas a proposição aprovada, na forma do substitutivo, não cumpre praticamente nenhum dos objetivos que uma Lei de Lobby deve cumprir. Parece ser mais uma cortina de fumaça na linha do “eu finjo que regulamento, você finge que obedece a regulamentação”.
Erigir uma legislação equilibrada, que favoreça a transparência e integridade do lobby, amplie a igualdade de acesso e o escrutínio sobre o processo decisório governamental, é um desafio. Vários países adotam regulamentações rígidas e detalhistas, das quais os Estados Unidos é o principal exemplo, fruto que são de contextos com elevados graus de corrupção no lobby. Argumenta-se que o excesso de rigor pode acabar por impedir a aplicação das regras e produz soluções de contorno para a sua burla. É verdade. Por outro lado, uma lei frouxa é, como se apontava até 1995, nos EUA, sobre a lei aprovada em 1946, então vigente, um “leão sem dentes”, que pouco ou nenhum efeito tem para legitimar o lobby e evitar práticas espúrias.
Países como o Canadá já aprovaram, mediante sucessivas revisões, uma legislação equilibrada e compreensiva, que atende a todos os princípios e objetivos de uma Lei de Lobby de forma consistente. Outros, como o Chile, adotaram “leis mínimas”, com caráter meramente formal, desperdiçando a oportunidade política que a introdução das leis de lobby produz para o aperfeiçoamento institucional. A Comunidade Europeia, que adota regulamentação branda, discute, neste momento, meios para tornar mais ampla, efetiva e consistente a sua legislação, notadamente pela exigência de registro obrigatório e ampliação da transparência do lobby, definido de forma compreensiva.
A matéria ainda será apreciada pelo Plenário da Câmara dos Deputados, oportunidade em que poderá ser aperfeiçoada e resgatados aspectos essenciais que se perderam pelo caminho. Há, ainda, no Senado Federal, o Projeto de Lei nº 336, de 2015, do Senador Walter Pinheiro, sob a relatoria do senador Ricardo Ferraço, que, em bases mais atuais, oferece ao debate uma legislação completa e detalhada, mas suficientemente flexível, para a disciplina do lobby, em consonância com debates travados ao longo de anos, sob a liderança da Casa Civil, Controladoria-Geral da União e Ministério da Justiça, para atender recomendação do Conselho de Transparência e Combate à Corrupção e da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro (ENCCLA).
Assim, para que não se perca a oportunidade histórica de produzir uma lei adequada, e que não esteja contaminada pelo viés corporativista e defensivo dos que não almejam, de fato, o controle e transparência sobre a atividade, será essencial que os membros do Parlamento, sensíveis às demandas da sociedade por maior transparência, integridade e equidade, revejam o texto em discussão e evitem, afinal, a concretização da expressão de Horácio “parturient montes, nascetur mus”, frustrando as expectativas há tanto alimentadas.
* Consultor legislativo do Senado Federal e advogado, é mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais e professor da EBAPE/FGV. Foi subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República (2003-2014).