Luiz Flávio Gomes e Rafael Pereira *
No Palácio da Aclamação (BA), um escândalo escravagista. No Palácio das Esmeraldas (GO), um baile funk promovido pelas filhas do governador. Os dois episódios mostram a confusão entre a coisa pública e a particular.
Escravagismo e confusão das propriedades familiares com a coisa pública (patriarcalismo e cordialismo). É a força do passado que não passa. É a velha ordem colonial que não se extingue. É a modernidade atrasada. É o país do gerúndio, sempre “em desenvolvimento”. É a barbárie que busca não dar espaço para a civilização.
Na festa de comemoração dos 50 anos da socialite Donata Meirelles, casada com o publicitário Nizan Guanaes, a anfitriã posou de sinhá ao lado de mulheres negras e sorridentes fantasiadas de escravas. Cena que não foi captada nem sequer pela perspicácia sociológica de Gilberto Freyre, no Casa Grande & Senzala.
As filhas do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), passaram pelo Palácio oficial para um baile privado. Uso da coisa pública como se fosse um quintal particular. Nosso passado colonial, nossa herança escravocrata e patriarcal, nossa cordialidade (bandida), que garantem às elites do atraso ou a seus familiares odiosos privilégios e caprichos, ainda estão absolutamente enraizados em nosso tecido social. É o moderno no colonial, é o arcaico no moderno.
Além da simbologia das extravagâncias em palácios públicos, as personagens desse presente-passado convergem na visão de mundo que defendem, qual seja, a do abandono dos direitos das pessoas, a existência de pessoas irrelevantes, desprezíveis.
PublicidadeNão titubeiam sugerir reformas injustas contra as parcelas mais carentes da população, aceitam o trabalho escravo como algo “natural” e se valem das suas forças familiares para influenciar a gestão da coisa pública. Praticam atos que revelam ser pertencentes às elites iliberais do poder, que usam o Estado ou as coisas públicas para satisfação dos interesses privados.
No nosso país, desde 1822, existem mesmo muitos liberais de fachada que, na verdade, são como “drogaditos” iliberais dependentes dos favores do Estado, segundo as regras do capitalismo de laços, de amizades, de relações.
Muitos fazem fortunas com o dinheiro público e não perdem nenhuma oportunidade de empunhar a bandeira do “Estado Mínimo” (para os outros), que significa, na verdade, “Estado Máximo” para seus exclusivos interesses.
Traficam financiamentos eleitorais com absoluta naturalidade, cobrando-se depois os favores estatais como isenção e renúncias fiscais, que atingiram, em 2018, 5% do PIB. Usam cargos públicos para a satisfação dos interesses privados, tal qual o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda.
Esses flashs do nosso cotidiano e suas personagens demonstram o quão distante estamos de superar nossas raízes históricas. Não basta propagar a ideia de que a culpa é dos ibéricos, é da tradição. Não existe nenhuma tradição determinista, cujo passado defina incontornavelmente o futuro.
Portugal hoje está muito bem, obrigado! Melhorou suas instituições, busca a civilização, com tropeços, mas sabe onde quer chegar. No Brasil nossas elites do poder continuam colocando em prática seu projeto de longa duração que consiste na dominação oligárquica para saquear a nação.
Reiteradamente aqui se celebra o passado colonial e sua estrutura patriarcal e escravagista, sob a roupagem moderna de um baile funk ou de uma celebração festiva.
As elites do poder, leia-se, as castas, apregoam a meritocracia garantida aos seus herdeiros enquanto suprimem direitos da maioria absoluta da população proprietária ou de classe média ou da classe trabalhadora precarizada ou dos excluídos. As castas desfrutam, se enriquecem, às custas do “resto”.
Compactuam-se com seus vícios e virtudes independente de governos, que passam. A roda continua a girar com as suas engrenagens viciadas, mas até aqui eficientes no menosprezo e no desprezo com a República.
Sérgio Buarque de Holanda já profetizava em seu clássico Raízes do Brasil que daríamos ao mundo o “Homem Cordial”. Ele se revela todos os dias nos nossos costumes e nas nossas tradições. Sérgio Buarque, se visto como narrador das elites, estava certo. Ainda estamos longe de nossa revolução e de uma sociedade plural, justa, igualitária e moderna. A força do passado ainda prevalece. Somos um país em que o passado não passa, daí a falta de perspectivas alvissareiras para o futuro, enquanto não sepultarmos definitivamente a velha ordem colonial.
* Luiz Flávio Gomes é professor, jurista e deputado federal pelo PSB de São Paulo.
Rafael Pereira é professor e pesquisador, doutor em História pela Unicamp. É autor de “A morte do Homem Cordial: trajetória e memória na invenção de um personagem (Sérgio Buarque de Holanda, 1902-1982)”, Paco Editorial, 2016.