Um presidente que corre pela grama com uma caixa de remédio atrás de uma ema. Nem o pobre animal assustado ele parece conseguir convencer da eficácia do medicamento.
Um ex-governador que cheira fumaça de solda certo de que ela lhe garantirá a cura.
Médicos e especialistas que são afastados dos seus cargos por se negarem a cumprir as ordens de quem prefere o curandeirismo à ciência.
Uma bióloga que se irrita com a superficialidade das perguntas de jornalistas.
Por mais absurdas que as cenas descritas acima possam parecer, elas não fazem parte do filme “Não Olhe para Cima”, tragicomédia exibida pelo canal Netflix com um elenco estelar formado por Leonardo di Caprio, Meryl Streep, Kate Blanchet e Jennifer Lawrence, entre outros. Elas são parte da nossa tragicomédia particular, que infelizmente parece estar sendo escrita pelo mesmo roteirista.
Não por acaso, desde que “Não Olhe para Cima” estreou, as comparações entre o que é descrito no filme e os absurdos vividos no Brasil desde o início da pandemia de covid-19 tornaram-se frequentes.
Claro, o filme não se destina a reproduzir a tragédia brasileira. Seu alvo é o negacionismo e a ignorância americanas no período Donald Trump. Mas a polarização ali vivida na era encabeçada pelo ex-presidente de pele alaranjada se replica por aqui na era Bolsonaro. E as semelhanças entre a história do governo de um país que se nega a enxergar os sinais evidentes de uma tragédia iminente que levará à extinção da humanidade são impossíveis de não serem notadas. Para aqueles que consideraram o filme dirigido por Adam Mckay caricato, exagerado e criticaram as atuações de alguns atores, classificando-os como canastrões, vale rememorar o que aconteceu no Brasil nos últimos meses.
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PublicidadeO Congresso em Foco reúne aqui dez momentos em que as semelhanças entre “Não Olhe para Cima” e o Brasil no enfrentamento da covid-19 não foram mera coincidência.
- Natália Pasternak se exalta com tom de leveza de programa de TV para tratar da tragédia da pandemia da covid-19
Dezembro de 2020
Em entrevista à TV Cultura, a apresentadora pergunta à bióloga Natália Pasternak se a pessoa deveria alertar outra que não está usando máscara ou deveria se afastar dela para não se estressar e comprar uma briga. Natália se exalta, fazendo crítica semelhante à da personagem de Jenifer Lawrence, que critica apresentadores de TV por usar um tom leve para tratar da tragédia iminente que ela alertava.
“Natália, o melhor é se afastar do não mascarado sem falar nada ou alertar a pessoa mesmo correndo risco de comprar uma briga?”
“Estou um pouco passada com o que eu escutei agora. Porque escutei humor, leveza, evitar o estresse. Então, eu não posso falar pro outro fazer a coisa certa porque eu vou ficar estressado? Porque ele pode se ofender e porque eu tenho que tratar isso com leveza e humor? Tem gente morrendo! Não tem humor, não tem leveza! Eu não tenho que pedir permissão do outro pra dizer a ele que ele tem de usar máscara, fazer a coisa certa, pra ele tomar vergonha nessa cara porque ele vai matar alguém. Desculpe eu me exaltar, mas eu acho que realmente poucas vezes eu vi uma reportagem tão inoportuna como vi agora.”
Veja a reação de Natália Pasternak:
https://twitter.com/TaschnerNatalia/status/1475323133229948931?ref_src=twsrc%5Etfw%7Ctwcamp%5Etweetembed%7Ctwterm%5E1475323133229948931%7Ctwgr%5E%7Ctwcon%5Es1_&ref_url=https%3A%2F%2Fwww.uol.com.br%2Fsplash%2Fnoticias%2F2021%2F12%2F27%2Fnatalia-pasternak-nao-olhe-para-cima.htm
- Bolsonaro diz que o Brasil precisa deixar de ser um país de maricas
Novembro de 2020
Bolsonaro comemora a suspensão dos testes com a Coronavac. O Brasil já tem 162 mil mortos pela covid-19, e o presidente diz que a pandemia está “superdimensionada”.
“Lamento os mortos. Todos nós vamos morrer um dia. Não adianta fugir disso, da realidade. Tem que deixar de ser um país de maricas”. Bolsonaro diz que a segunda onda da covid era uma “forma de amedrontar o povo”.
No filme, a presidente dos Estados Unidos, interpretada por Meryl Streep promove comícios nos quais minimiza os riscos de colisão de um cometa contra o planeta Terra, mesmo depois que ele fica visível a olho nu. Diante da evidência, ela adota o slogan “Não olhe para cima”.
Leia a reportagem no Congresso em Foco
- Ministro da Ciência e Tecnologia defende medicamento ineficaz contra a covid
Outubro de 2020
O ministro da Ciência e Tecnologia, o astronauta Marcos Pontes, anuncia numa solenidade no Palácio do Planalto os resultados de uma “pesquisa” financiada pelo governo que apontaria para os resultados eficazes da nitazoxanida, remédio conhecido pela marca comercial de Anitta. Em janeiro de 2021, o Ministério da Saúde constata a ineficácia do medicamento e não incorpora o remédio em seus protocolos contra a covid-19.
No filme, um empresário do ramo de tecnologia interrompe o lançamento de mísseis e foguetes que iriam desviar o cometa para apostar em uma outra saída que preservaria as riquezas minerais do objeto prestes a se chocar com a Terra sem fazer os devidos testes que comprovariam a eficácia do seu projeto.
- Bolsonaro despreza a ciência e acredita nos tratamentos ineficazes contra a covid
Durante todo a pandemia, e ainda agora, Bolsonaro insiste no sucesso de tratamentos ineficazes contra a covid. Em um dos momentos mais tragicômicos da sua cruzada em favor de tais tratamentos, Bolsonaro apareceu no gramado do Palácio da Alvorada correndo atrás de uma ema com uma caixa de cloroquina nas mãos.
No filme, a presidente dos Estados Unidos aborta uma missão que desviaria a rota do cometa por preferir acreditar numa estratégia não testada e ineficaz para evitar a colisão.
- Em plena pandemia, Bolsonaro viaja aos Estados Unidos para ser retratado por Romero Britto. Do voo presidencial, 22 pessoas voltam contaminadas pela covid
Março de 2020
No mesmo mês em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia de covid-19 no planeta, o presidente Jair Bolsonaro viajou aos Estados Unidos, então presidido por seu aliado Donald Trump. Bolsonaro foi à Flórida, teve um jantar com Trump na residência presidencial na cidade de Mar-a-Largo, encontrou-se com nomes de direita como Steve Bannon e Olavo de Carvalho e visitou o ateliê do artista plástico Romero Britto, que fez um quadro com ele e com a primeira-dama Michele Bolsonaro.
No filme, a presidente dos Estados Unidos está mais preocupada com a repercussão da indicação que fez para a Suprema Corte de um ex-ator pornô que foi seu amante do que com o alerta de colisão do cometa com a Terra.
- Luana Araújo é afastada do Ministério da Saúde por se recusar a defender tratamento precoce contra a covid
Junho de 2021
Na CPI da Covid, a infectologista Luana Araújo diz que a discussão sobre tratamento precoce defendido por Jair Bolsonaro é “delirante, anacrônica e contraproducente”.
Luana ficou somente dez dias como secretária de Enfrentamento à Covid do Ministério da Saúde. Foi afastada por ordem do próprio Bolsonaro justamente por se recusar a seguir os procedimentos não científicos e negacionistas que o presidente preconiza.
No filme, a cientista interpretada por Jenifer Lawrence é afastada das pesquisas para desviar o cometa que ela mesma descobriu por se recusar a apoiar os projetos sem eficácia que o governo dos Estados Unidos prefere adotar.
- Ministro da Saúde também cai por se negar a defender estratégias do governo
Abril de 2020
Não foi apenas Luana Araújo quem saiu por se recusar a seguir as ordens do governo. Antes dela, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, foi demitido por Jair Bolsonaro. Mandetta seguia as recomendações sanitárias que pregavam o isolamento social e o uso de máscara para evitar a contaminação pelo coronavírus. Vinha sendo elogiado por sua conduta, atingindo mesmo níveis de popularidade mais altos que os do próprio presidente.
No filme, o cientista vivido por Leonardo di Caprio é no primeiro momento incorporado à equipe do governo que lidará com a ameaça do cometa. Torna-se famoso, vira capa de revistas. Mas, diante do negacionismo do governo, acaba sendo afastado.
- Filho do presidente não tem cargo, mas exerce forte influência no governo
O vereador Carlos Bolsonaro não tem um cargo no governo. Mas a sua influência, principalmente nas redes sociais do presidente, é forte e evidente. Carluxo, como é conhecido, atua na montagem dos perfis de Bolsonaro na internet desde a campanha presidencial. E está ligado às investigações que apontam para a existência do chamado “Gabinete do Ódio”, conjunto que atuaria para a disseminação de fake news e ataques contra adversários.
No filme, o filho da presidente, interpretado por Jonah Hill, trabalha como assessor na Casa Branca.
- Vítimas do negacionismo morrem de covid-19
Não foram poucas as pessoas que no Brasil infelizmente morreram vítimas da covid-19 por negacionismo. Porque não davam importância para os alertas contra a doença. Porque preferiram acreditar em discursos que minimizavam a doença, que preconizavam tratamentos ineficazes, remédios caseiros. Que acreditavam que a covid-19 só atingia pessoas idosas, mais fracas, sem “histórico de atleta”.
No filme, um grupo de privilegiados parte da Terra em um foguete para evitar o fim trágico que a colisão do cometa provocaria. No grupo, está a presidente dos Estados Unidos. Quando eles desembarcam no novo planeta de clima semelhante ao da Terra, ela acaba sendo devorada por um animal selvagem existente no local.
- Essa podia ser cena do filme: ex-governador diz que cheirar fumaça de solda cura a covid
Para os que acharam “Não Olhe para o Céu”, um filme exagerado e caricato, deixamos vocês com essa cena que bem poderia fazer parte da própria película pelo seu absurdo. Sem camisa, o ex-governador Ivo Cassol aparece nas redes sociais em um vídeo no qual ele solda um pedaço de metal enquanto outra pessoa, de nome Fabrício, que ele diz que está com covid, fica cheirando a fumaça da solda. Cassol diz que está testando em Fabrício, que usa uma bermuda florida, as propriedades curativas da fumaça de solda.