No último dia 28, foi celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida em homenagem às vítimas da Chacina de Unaí, em 2004. Nesta semana, um dos condenados pelo episódio, que culminou no assassinato de auditores do trabalho e um motorista, foi preso pela Polícia Federal, em Campo Grande (MS).
A despeito do simbolismo da data e do episódio, o Congresso Nacional caminha a passos lentos para legislar sobre o assunto. Desde 2003 os parlamentares não aprovam uma lei que endureça o combate ao trabalho escravo ou que beneficiem as vítimas. Repousam nas gavetas da Câmara e do Senado projetos que preveem penas maiores para os criminosos, e outros que visam a resguardar direitos para as vítimas. Mesmo com dados assustadores a respeito da prática desse tipo de crime no Brasil, o tema não avança na pauta legislativa.
Segundo dados da Coordenação-Geral de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Análogo ao de Escravizado e Tráfico de Pessoas (CGTRAE), do Ministério do Trabalho e Emprego, o Brasil registrou em 2023 o maior número de resgatados em condições análogas à escravidão em 14 anos. No último ano, foram resgatadas 3.190 pessoas. Em 2009, eram 3.765 trabalhadores.
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A coordenadora do GT de Combate à Escravidão Contemporânea da Defensoria Pública da União (DPU), Izabela Luz, explica que esses dados e o aumento do número de resgatados “têm muitos fatores”, como a pandemia e a fiscalização.
“Na economia brasileira pós-pandemia, a pobreza aumentou, muitas famílias catando lixo na rua, trocando o trabalho por um prato de comida, o que contribuiu para o aumento de trabalho análogo à escravidão. Outro fator interessante é a evolução da fiscalização, hoje a gente tem a tecnologia na nossa mão. Em uma semana a gente fiscaliza cinco denúncias, houve aumento da qualidade de fiscalização”, aponta.
Expropriação das terras
Ao todo, existem ao menos quatro projetos de lei no Congresso que regulamentam a expropriação de propriedades rurais e urbanas onde for localizada a exploração de trabalho escravo. Na Câmara estão os PLs 978/2023 e 1102/2023, de autoria da bancada do Psol e da deputada Reginete Bispo (PT-RS), respectivamente. Os dois projetos, no entanto, foram apensados, isto é, juntados ao PL 777/2023, por tratarem do mesmo tema.
PublicidadeNo Senado, o PL 1678/2021, de autoria de Rogério Carvalho (PT-SE) e Paulo Paim (PT-RS), está na Comissão de Direitos Humanos. Já o PL 5970/2019, de iniciativa do líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), está mais avançado na Comissão de Assuntos Sociais. Ambos os textos defendem que donos de propriedades onde sejam identificados trabalhos análogos à escravidão tenham seus terrenos expropriados.
Pena para empregadores
O PL 5016/2005, do ex-senador Tasso Jereissati, tramita há quase 20 anos no Congresso. O texto, que está na Câmara, aumenta penalidades para o trabalho escravo. Além de alterar dispositivos do artigo 149 do Código Penal, propondo pena de cinco a dez anos de reclusão e pagamento de multa, o texto reforça que “serão apreendidos equipamentos e instrumentos empregados no trabalho escravo, ou em condição análoga, e os produtos dele resultantes”.
Atualmente, o PL tramita com outros 46 projetos apensados a ele, incluindo o PL 777/2023, que trata da expropriação de terras. Neste mês, a fim de acelerar a tramitação da proposta, o deputado Marangoni (União Brasil-SP) protocolou requerimento para abertura de uma comissão especial para analisar a matéria.
“Vale ressaltar que em 18 de dezembro de 2019 houve publicação de Ato da Presidência para criação da Comissão Especial para que a proposição e seus apensados fossem analisados por uma comissão especial, a qual não fora constituída”, justifica o parlamentar.
Outro PL que institui punição para empregadores que utilizem trabalho escravo é o 3.908/2023, que cria o Selo Patriota de Qualidade. Entre outras condições para o acesso a benefícios fiscais do governo, está a não indicação de empregadores flagrados explorando trabalhador em condição análoga à escravidão.
Cassação do CNPJ
O PL 7946/2017, de autoria do ex-deputado Roberto de Lucena, propõe que empresas que fizerem uso direto ou indireto de trabalho escravo ou análogo ao de escravo terão sua inscrição no CNPJ cancelada, e seus dirigentes ficarão impedidos de atuarem no mesmo ramo de atividade pelo período de dez anos. A penalidade também vale para empresas que adquirirem produtos oriundos do trabalho escravo tendo conhecimento da origem.
A matéria está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados e aguarda apenas ser colocada em pauta. O relatório do deputado Diego Garcia (Republicanos-PR) não recebeu nenhuma emenda e atestou a constitucionalidade da proposta.
Crime hediondo
De autoria do senador Randolfe Rodrigues, o PL 4371/2019 estabelece que reduzir alguém à condição de trabalho análogo à escravidão será crime hediondo. “Dessa forma, quando houver o desrespeito aos direitos dos trabalhadores, violando sua dignidade e liberdade, estará caracterizado o trabalho degradante, consequentemente considerado crime hediondo”, aponta o senador.
Desde 21 de dezembro de 2022, o texto está na Secretaria de Apoio à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aguardando a designação de relator para a proposta.
Seguro-Desemprego
Considerada uma das propostas com mais chances de ser aprovada, o PL 3168/21 amplia o seguro-desemprego para vítimas de trabalho escravo de três para seis parcelas do benefício. O autor do projeto, deputado Carlos Veras (PT-PE) explica ao Congresso em Foco que a ampliação é fundamental para garantir segurança aos resgatados.
“O período de apenas três meses, hoje restrito aos resgates de trabalho escravo, muitas vezes não dá conta da realidade e fragiliza o adequado amparo à vítima, pois, em muitos casos, sua recolocação em um posto de trabalho decente demanda um prazo maior”.
O relator do parecer na Comissão de Tributação e Finanças (CFT) da Câmara, deputado Paulo Guedes (PT-MG), disse à reportagem que “ainda está trabalhando na questão do relatório”. Ele afirmou, no entanto, que vai continuar na relatoria e na comissão. Segundo o parlamentar, ainda é cedo para afirmar se o projeto estará em pauta neste ano. Caso seja aprovado, o texto vai à CCJ.
“Nós temos um país dividido que demanda a defesa dos direitos humanos e dos direitos do poder econômico. As fiscalizações do trabalho escravo continuaram de uma forma menor [no último governo]. Ainda enfrentamos isso, a sociedade brasileira finge que não vê ou não quer ver [trabalho escravo]”, explica Izabela Luz.
Ainda de acordo com a defensora pública, além de impor dificuldades no próprio combate, os diferentes interesses também impactam o avanço de projetos de lei que visam enfrentar o trabalho análogo à escravidão no Congresso. O último avanço na questão, por exemplo, foi com a Lei 10.803/2003, que altera o artigo 149. “As empresas não são interessadas em fortalecer esses projetos, estamos andando contra a maré”, desabafa.
Em números absolutos, o Brasil está em 11º lugar no ranking mundial do Índice Global de Escravidão, da organização de direitos humanos Walk Free, que analisa a situação de 160 países. Estima-se que 1.053.000 pessoas vivam em um cenário de escravidão contemporânea no país. A escravidão contemporânea abrange uma série de fatores, como trabalho forçado, a escravidão por dívida, o casamento forçado, práticas de escravidão e análogas à escravidão e tráfico de pessoas.