Além de pedir o indiciamento de 61 pessoas, o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas aponta corrupção e desvio de finalidade em contratos da Polícia Rodoviária Federal (PRF). O relatório de mais de 1.300 páginas apresentado nesta terça-feira (17) pela senadora Eliziane Gama (PSD-MA) investigou as aquisições de blindados, de sistemas de inteligência e de armas pela PRF, fornecidos respectivamente por Combat Armor, Cognyte e Franco Giaffone.
De acordo com dados do governo coletados no Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG) e Sistema de Convênios (Siconv), os recursos orçamentários investidos na PRF mais do que quintuplicaram entre 2019 e 2020. O investimento foi de 137 milhões de reais para 712 milhões. Para Eliziane, o incremento orçamentário no órgão, durante o governo Bolsonaro representa uma pretensão de poder para a PRF.
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“[Os investimentos] guardam a pretensão de modificar infralegalmente a competência constitucional da PRF, para que pudesse passar a ser, com um diretor-geral particularmente interessado no projeto de poder, uma força policial da inteira confiança do presidente da República, disposta mesmo a entrar nas cruzadas mais antirrepublicanas, como a tentativa de embaraçar o livre exercício do direito a voto no Brasil, em nítido desvio das finalidades constitucionalmente aceitáveis para a força policial”, escreve a relatora.
Nesse contexto de investimentos ostensivos na PRF, foram identificados pelo parecer contratos de veículos blindados, pela Combat Armor, e de sistemas de inteligência para monitoramento de redes sociais, oferecido pela Cognyte. Pelo entendimento da senadora, não havia motivos para a contratação desses serviços para órgão, senão o desvio de função. Além dos contratos com as duas empresas, a investigação da comissão identificou que houve aproximação da PRF com a fabricante de armas austríaca Glock, por meio de seu representante no Brasil, Franco Giaffone, durante o governo Bolsonaro.
Corrupção na Combat Armor
A Combat Armor é uma empresa de veículos blindados. Quando foi aberta em 2011 no estado americano de Idaho, o nome era Ad Faction Inc.. De 2013 a 2018, a empresa permaneceu inativa, uma vez que não enviou o relatório anual de atividades para o estado. Em janeiro de 2019, a antiga Ad Faction Inc entrou com um pedido de reintegração, com a mudança do nome para Combat Armor Defense Inc.
PublicidadeOs problemas encontrados pela investigação começam com a pesquisa na internet sobre a atuação da empresa no setor de blindados. Não há resultados. Da mesma forma, os endereços registrados pela Combat Armor não correspondem a indústrias, são de uma área residencial e um escritório de advocacia em um prédio comercial. Por outro lado, enquanto os resultados não levam à empresa americana, direcionam para a empresa Combat Armor Brasil, criada por Maurício Junot.
Desta feita, a comissão acredita que a empresa americana não exista de fato e seja apenas um subterfúgio para a atuação no Brasil. “Há fortes indicativos de que se trata de uma empresa “de papel”, sem qualquer atuação no ramo de blindados, cujo propósito de reativação e alteração do seu contrato social foi viabilizar negócios no Brasil”, explica a relatora Eliziane Gama.
Um mês depois do pedido de reintegração pela Combat Armor americana, Junot registrou no Brasil a Combat Armor Defense do Brasil, com sede em Indaiatuba (SP). No site da empresa, consta a informação de que “já são 20 anos de história com mais de 5.000 veículos blindados e entregues em mais de 30 países”, mesmo tendo surgido em 2019. Apesar disso, a atuação de Junot no ramo da blindagem de veículos corresponde ao período apontado.
Mesmo sem histórico de contratação com a administração pública, no final de 2020, a empresa venceu, em um intervalo de 10 dias, três pregões no âmbito da Superintendência da Polícia Rodoviária Federal do Rio de Janeiro, cujo superintendente à época era Silvinei Vasques. Em dois desses pregões a empresa foi a única licitante, e o valor estimado dos três contratos somados foi de R$ 32.953.450,28. No mesmo ano, a Combat Armor também venceu um pregão no âmbito da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, com valor estimado de R$ 20.880.000,00.
Segundo a investigação, não existiam indicativos concretos de que se tratava de uma empresa do ramo. Mas ainda sim, “a empresa foi beneficiada pela leniência de agentes públicos da PRF, que aceitaram atestados de capacidade técnica inidôneos, cujas fragilidades eram de fácil percepção”. Os certificados foram emitidos pela empresa americana HPC Armoring Professionals, que pertence ao dono da Combat Armor, Maurício Junot. As declarações atestaram que a Combat Armor teria entregado diversos veículos blindados, o que viabilizou a entrada da empresa nos pregões.
Eliziane Gama explica no relatório que, além do desvio de finalidade da PRF, os contratos firmados em 2020, no auge da pandemia, representam uma inversão nas prioridades estatais. “Em um cenário onde a prioridade do Estado deveria ser o enfrentamento da pandemia e o desenvolvimento/aquisição de vacinas e outras medidas de saúde, são, no mínimo, questionáveis a conveniência e a oportunidade para esse tipo de aquisição”.
Apesar de a empresa ter demonstrado dificuldades em cumprir os contratos de 2020, com atrasos de entregas e alargamento temporal do contrato, em 2022 a Combat Armor venceu outro pregão com valor estimado de R$ 14 milhões. Desta vez, o contrato era destinado ao Departamento de PRF/DF, quando Silvinei Vasques já era o diretor-geral da organização. Segundo o relatório, há uma clara conexão entre Silvinei e os contratos da Combat Armor.
“As três unidades gestoras com maior valor dispendido à Combat foram a Superintendência do RJ, local de que foi superintendente até abril de 2021, o Departamento de Polícia Rodoviária Federal em Brasília (quando Silvinei já era diretor-geral) e a Superintendência da PRF em SC, onde já exerceu o cargo de superintendente. Os montantes [dos valores pagos à empresa, que são inferiores aos estimados], respectivamente, foram de R$16.393.585,25, R$6.152.154,00, R$ 4.452.000,00.”, aponta o relatório.
A defesa de Silvinei rebateu as acusações presentes no parecer. “Achei ótimo. Quanto mais absurdo melhor para a defesa. A relatora não sabe nada de Direito. Acredito que não sabe nem o que está lendo. Grande dia. Em relação ao Silvinei, o MPF vai jogar o relatório na lata do lixo. E não se precisa de bola de cristal para saber disso”, explica a nota.
A Combat Armor recebeu efetivamente R$ 38.928.136,25 da União, mais de 86% desse valor foi pago pela Polícia Rodoviária Federal. Todavia, a empresa encerrou as operações no Brasil no primeiro semestre de 2023, logo após a transição do governo federal. Dessa forma, a Combat Armor não honrou uma série de contratos firmados com a PRF. Outro ponto levantado pela investigação foi o pagamento apressado no final de 2022. Cerca de 37% do total pago à empresa foram pagos nos últimos três meses, em que o parecer considerou uma “estranha movimentação indicativa de que se precisava correr com os pagamentos”.
Possível desvio de finalidade dos contratos com Cognyte e Franco Giaffone
A Cognyte, empresa israelense do ramo da inteligência contratada para um sistema de monitoramento de redes sociais, desenvolve sofisticados sistemas e ferramentas de monitoramento e espionagem. Entretanto, apenas os órgãos de polícia judiciária realizam contratos dessa natureza, para o aperfeiçoamento das investigações. Assim como a PRF, a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também adquiriu um produto da empresa a fim de monitorar o deslocamento e a localização de pessoas por meio dos aparelhos celulares.
Segundo o entendimento da comissão, a utilização de sistemas de monitoramento de redes sociais pela PRF “parece desbordar das atribuições de uma polícia de patrulhamento ostensivo”. Em razão disso, a CPMI solicitou ao Tribunal de Contas da União (TCU) a fiscalização para verificar a regularidade das contratações do órgão com a empresa. O Tribunal já dirigiu as perguntas da comissão para a PRF, que inclusive já respondeu. Contudo, o TCU ainda não analisou as respostas.
A comissão também solicitou ao TCU a investigação das licitações com as empresas Glock do Brasil, Glock América e o representante da marca no Brasil, Franco Giaffone. Assim como na investigação da Cognyte, o resultado dos trabalhos do Tribunal ainda não está disponível. O relatório da CPMI também propõe o aprofundamento das investigações pela Polícia Federal (PF), em razão da competência constitucional do órgão de apurar infrações penais contra a ordem política e social.