A reforma tributária aprovada no cerrar de cortinas de 2023 trará ao país efeitos benéficos incontestáveis, e há muito tempo esperados. O texto elimina 27 ilhas: os estados e o Distrito Federal, cada uma delas com uma incontável profusão de impostos, em um gigantesco cipoal burocrático. O primeiro – e necessário – grande passo foi dado, mas, agora, o desafio está na construção de uma regulamentação que traga mais justiça fiscal ao nosso país.
E essa é a parte mais difícil. Ainda na fase inicial no Parlamento, é fundamental que a regulamentação saia este ano. Não podemos passar outras três décadas tentando resolver o “carnaval tributário brasileiro”, pegando emprestada a expressão do jurista gaúcho Augusto Alfredo Becker. É hora de união de forças entre Executivo, Legislativo e sociedade para que a reforma seja regulamentada de forma precisa e eficaz.
Procuradores de estado e do Distrito Federal – servidores públicos que vivem o dia a dia na ponta, enfrentando os efeitos de um sistema tributário confuso e oneroso – têm participado ativamente de debates e estudos para a construção de sugestões que possam tirar o Brasil de índices vergonhosos. Um exemplo, segundo dados da pesquisa Doing Business, do Banco Mundial, estamos nas últimas posições, em uma relação de 190 países, no tempo gasto com o pagamento de impostos – média de 1,5 mil horas por ano.
A Associação Nacional dos Procuradores de Estado e do Distrito Federal (Anape) está acompanhando de perto a tramitação dos projetos de lei complementares elaborados pelo Executivo para instituir o modelo dos novos impostos e regulamentar a coordenação dos fiscos estaduais, municipais e da Receita Federal. É primordial a participação da sociedade civil nos grupos de trabalho que irão analisar as propostas na Câmara dos Deputados.
A reforma tributária promulgada acerta ao simplificar e reduzir a carga tributária a dois tributos: a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal; e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), com gestão compartilhada entre estados e municípios. Entretanto, ainda temos muito mais perguntas do que respostas.
É necessário definir com clareza, por exemplo, como será o Comitê Gestor do IBS, de modo a não ferir a autonomia dos governos estaduais e dos municípios na fiscalização e na arrecadação. Essa independência tem de ser preservada a todo custo.
Outra questão crucial na regulamentação é a processual. Perguntas que não podem calar: como repartir o IBS, uma competência dos estados e dos municípios? Se temos um tributo com dois entes responsáveis por sua cobrança, tem de haver um órgão jurisdicional único para realizar a arrecadação. Qual será, então, o ente federativo competente para fazer a execução fiscal do IBS?
E na relação entre IBS e CBS? Diante de um mesmo fato gerador, como se dará a discussão processual, considerando que um está na competência da justiça federal e outro da justiça estadual? E se tivermos decisões contrárias? É preciso uma justiça nacional e célere para trabalhar essas divergências.
Outro ponto essencial é a execução fiscal. Não se pode falar em reforma tributária sem que se estabeleça um sistema mais rápido e eficiente de execução fiscal. A falta de celeridade faz com que 87% dos processos não sejam concluídos, permitindo que o mau pagador, o sonegador contumaz escape da punição, permanecendo com o patrimônio intacto. Imposto sonegado é recurso público que deixa de ser arrecadado em benefício da coletividade.
Também seria essencial à reforma tributária a fixação de requisitos claros e rigorosos para definir o devedor contumaz, o que poderia ser feito por meio da tramitação conjunta do PLP 164/22, hoje no Senado Federal, ou dos artigos que tratam do tema no PL 15/24, na Câmara dos Deputados. Aquele que, repetidamente, sonega impostos, causa duplo prejuízo à sociedade. Primeiro, cria um desequilíbrio no mercado, prejudicando empresas que cumprem suas obrigações fiscais. Essa concorrência desleal não só enfraquece o ambiente de negócios, mas também desencoraja a formalidade e a transparência nas operações comerciais. Estabelecer critérios precisos para identificar e penalizar esses devedores é essencial para promover uma competição justa e saudável.
Além do impacto direto na concorrência, a persistente inadimplência tributária por parte dos devedores contumazes priva o Estado de recursos vitais que poderiam ser investidos em políticas públicas. O não pagamento de tributos limita a capacidade governamental de financiar serviços essenciais como saúde, educação e infraestrutura, afetando diretamente a qualidade de vida da população. Por isso, é necessário garantir que aqueles que burlam o sistema sejam responsabilizados, para que os recursos arrecadados possam ser corretamente aplicados em benefício de toda a sociedade, evitando a dupla penalização da mesma: pelo desequilíbrio da concorrência e pela falta de investimentos públicos.
Temos, portanto, de promover uma regulamentação da reforma tributária na medida exata para que se efetive a justiça fiscal de que o Brasil tanto necessita. Vivemos um momento único e precisamos aproveitá-lo para pensar fora da caixa. O caminho trilhado nos leva a um lugar excelente, só precisamos, com parceria e compartilhamento de conhecimentos e experiências, recolher as pedras da estrada para que ela seja de fácil trilhar, sem tropeços.
* Vicente Martins Prata Braga é presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado especialista em Direito Tributário, procurador do Estado do Ceará, pós-doutor em direito público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
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