Antes que a reforma tributária entre em vigor, é preciso preparar a população para a nova realidade que se estabelecerá e afastar os temores, de certo modo infundados, que muitos ainda carregam e expressam no debate público. As manifestações de dúvida e de insegurança, presentes na mídia, são naturais, até esperadas. O Brasil aprendeu a viver sob o nosso velho e caótico sistema tributário e, mais do que isso, conseguiu sobreviver e até prosperar apesar dele. E um novo sistema muito mais simples parece suspeito para quem se acostumou a viver em um país onde mais de 400 mil normas tributárias entraram em vigor desde a promulgação da Constituição de 1988.
Temos que considerar ainda que a nova sistemática não é nova somente por ter sido aprovada agora. É, principalmente, por conter regras e instrumentos inovadores, inéditos em nosso ordenamento jurídico. A começar pelo IVA (Imposto sobre Valor Agregado), um tributo nacional e dual, ou seja, formado por uma fatia que vai ser do Governo Federal – a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) –, e outra fatia recolhida para os estados e munícipios, o chamado Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
A Constituição de 1988 definia o fluxo legislativo para a criação e regulamentação de tributos estaduais. Por aquele regramento, era necessária a aprovação, pelo Congresso, de Lei Complementar Federal, fixando normas gerais, e a aprovação de leis ordinárias, pelas assembleias legislativas, para que os impostos pudessem ser cobrados. A PEC 45/2019, que reformou nosso sistema tributário, mudou este processo e definiu que o IBS será instituído não por leis estaduais, mas por uma “Lei Complementar Federal Única”, norma concomitante e conjunta, ou seja, válida do Oiapoque ao Chuí, da Ilha do Recife aos confins da Amazônia.
Como integrante do grupo de trabalho encarregado de relatar o projeto de lei que cria o Comitê Gestor do IBS tenho sido questionado, com frequência, sobre a possibilidade de a nova regra vir a ser prejudicial a este ou aquele estado, município ou região.
Somos um dos países mais desiguais do mundo. Desigualdade entre pessoas – dados do Ipea mostram que 1% dos brasileiros mais ricos detêm 28,3% da renda total – e desigualdade entre regiões: o rendimento nominal domiciliar per capita do Centro-Oeste era R$ 2.264 em 2023, praticamente o dobro do apurado no Nordeste, onde a renda familiar média fica em R$ 1.155, segundo o IBGE.
E esta realidade não é obra do acaso. Foi construída ao longo dos séculos, desde o período colonial. Historiador econômico doutorado pela London School of Economics e professor da FGV-Rio, o professor André Villela estudou a arrecadação dos tributos e a distribuição dos recursos no tempo de Dom Pedro II (1844 a 1889). Naquela época o país era pensado como se fosse dividido basicamente em duas grandes regiões: o Norte (que hoje chamamos de Norte, Nordeste e Centro Oeste), e o Sul – que inclui os atuais Sudeste e Sul. Segundo o estudo de Villela, apesar de contribuir com 35,5% das receitas do Império, apenas 16% das receitas totais eram aplicados nas províncias situadas ao Norte do país, sendo 69% direcionados para as províncias do Sul e 15% – já àquela altura – destinados ao pagamento dos juros da dívida externa brasileira, da qual eram credores bancos londrinos.
Por isso, quando um governador ou as bancadas dos estados do Norte ou do Nordeste se inquietam e expressam dúvidas, devemos explicar com clareza que foi justamente para evitar situações como as acima mencionadas que a emenda da Reforma previu a criação de um Comitê encarregado de gerir a arrecadação do IBS e coordenar a distribuição entre os estados e munícipios.
Órgão técnico operacional orientado por um conselho onde 100% dos seus 54 integrantes são representantes de estados e municípios – e não há representante da União –, o comitê terá papel determinante para a proteção dos interesses econômicos e da autonomia dos entes federados. No que diz respeito especificamente ao Nordeste, pontuamos que a região terá peso importante nas decisões do comitê tanto em função da quantidade de estados – nove, ou seja, um terço da representação – quanto pelo peso de sua população, que representa quase 27% dos brasileiros, segundo o ultimo censo.
E, mais importante ainda, o Comitê Gestor, no tocante a distribuição dos recursos funciona apenas como uma caixa de passagem, uma vez que seu papel se resume a arrecadar os impostos e distribui-los automaticamente de acordo com a regra definida pela reforma, com a tributação sendo feita no destino e não na origem, como ocorre agora.
Temos tradição de protelar mudanças necessárias, de promover acomodações para não enfrentar interesses contrariados. Às vezes até promovemos mudanças, mas geralmente do tipo defendido por certo personagem do romancista italiano Giuseppe di Lampedusa: “Mudar um pouco para que fique do jeito que sempre foi”. Este não é o caso da reforma tributaria aprovada no ano passado e cuja regulamentação caminha de modo sereno e firme.
Ao examinar o projeto enviado pelo governo, o grupo de trabalho do qual faço parte cuidou de fazer alguns aperfeiçoamentos importantes. Asseguramos a reserva de 30% dos assentos na diretoria executiva do Comitê Gestor para mulheres, o que certamente contribuirá para corrigir distorções como as que se observa hoje, em um sistema no qual a maior parte dos integrantes dos corpos de auditores fiscais e até dos representantes políticos são homens.
Outro aperfeiçoamento foi a garantia que estabelecemos para que o CBS e o IBS tenham uma uniformização. Os sistemas serão integrados e na hipótese de uma empresa ter que se defender de autuações simultâneas nas esferas federal e estadual, ela precisara fazer apenas uma defesa e, no caso de haver decisões divergentes, o Comitê e o CARF, na esfera federal, deverão harmonizá-las.
Em resumo, com a reforma foram criados condições para que estados e municípios joguem todos juntos na garantia dos recursos necessários para que as politicas publicas se efetivem ao nível dos governos locais. Trata-se de um passo muito importante para construir equilíbrio no historicamente desequilibrado regime federativo brasileiro.
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A Reforma Tributária é crucial para simplificar o sistema de impostos no Brasil, promovendo maior justiça fiscal e eficiência na arrecadação. Ao reduzir a complexidade tributária, ela estimula o ambiente de negócios, atrai investimentos e impulsiona o crescimento econômico sustentável, beneficiando tanto as empresas quanto a sociedade.
Hartli Bethers