Nesta quinta-feira (5), a Constituição Federal de 1988 completa 35 anos de existência, ocupando a posição de segunda mais longeva na história da República e terceira na história do país. Passadas três décadas, ela ainda conta com um amplo potencial dormente de inclusão social, conforme conta o senador Paulo Paim (PT-RS), um dos cinco constituintes que ainda ocupam vagas no Congresso Nacional.
Estruturada em um momento de trauma provocado por duas décadas de ditadura militar, o texto constitucional foi elaborado mediante ampla participação da população, resultando em um extenso rol de liberdades individuais, compromissos sociais do Estado e direitos políticos. Muitos, porém, dependem de regulação para que possam ser plenamente exercidos. Paulo Paim considera que a completude desse processo é o que resta para que a Constituição esteja plenamente implementada.
Paim ressalta que muitos dos efeitos das inovações constitucionais já podem ser observados. O principal avanço, ao seu ver, foi a criação das bases para que pudessem ser instituídos mecanismos de inclusão de mulheres, negros e outras maiorias minorizadas dentro da política, mesmo que em passos mais lentos do que o ideal.
Leia também
“Nossa Constituição tende a um futuro secular. Hoje ela faz 35, mas espero que ela consiga chegar aos seus 100 anos sem sofrer grandes mudanças. Agora, é necessário entender que simplesmente mexer na Constituição não vai resolver os problemas do país”, defende o senador nesta entrevista exclusiva.
Em paralelo ao esforço para avançar com as regulações previstas ao longo do texto da Constituição, foram também aprovadas, até o momento, 131 emendas constitucionais, uma média de 3,7 por ano. O senador considera que muitas delas visam ampliar ainda mais os direitos por ela previstos, mas lamenta que não é sempre esse o caso: parte dos esforços para mudar a Carta Magna inclui retrocessos, e isso se aplica, na avaliação do senador, à PEC 9/2023, que anistia os partidos que descumpriram as cotas orçamentárias de gênero e raça nas eleições de 2022. A proposta aguarda votação na Câmara, mas enfrenta resistência no Senado.
Embora seja considerada uma das mais modernas do mundo, a Constituição brasileira precisa passar por mudanças em um futuro próximo, segundo Paim. O rápido avanço da tecnologia da informação deverá, com o tempo, exigir do Parlamento a inclusão de mecanismos que permitam a adequação do mundo digital às garantias estabelecidas no texto.
PublicidadeAlém de Paim, também foram constituintes e seguem no Congresso o senador Renan Calheiros (MDB-AL) e os deputados Aécio Neves (PSDB-MG), Lídice da Mata (PSB-BA) e Benedita da Silva (PT-RJ).
Confira a seguir a entrevista com Paulo Paim:
Congresso em Foco – O senhor participou do processo de construção da Constituição, e testemunhou a aprovação das emendas que a sucederam nessas três décadas. Como enxerga essas mudanças constantes?
Paulo Paim – O mais importante da Constituição foi construído ainda na sua criação, em uma constituinte democrática que ampliou os direitos sociais, avançou nos individuais e coletivos, apontou caminhos para o futuro e continua sendo um texto atual. Ela foi tão avançada para a época que, mesmo hoje, permanece vista como um texto muito moderno, tanto que dificilmente ouvimos alguém falar em fazer uma nova assembleia constituinte.
Nós avançamos muito, mas entendo que não existe lei perfeita. Eu gostaria de ver novas emendas para ampliar ainda mais os direitos, e não para retirar. Infelizmente, de lá para cá, em muita pouca coisa nós evoluímos. A Constituição segue com a maioria de seus artigos sem regulamentação. Quando forem regulamentados, teremos um passo gigantesco em direção ao país que todos nós sonhamos.
O texto elaborado tem de tudo que se possa imaginar: fala de combate ao racismo, preconceitos, trata do mundo do trabalho, políticas humanitárias, fortalecimento da democracia. Se ela não for mutilada, ainda vai dar muito brilho ao Brasil pelos próximos cinquenta anos no mínimo.
Quais fatores você considera responsáveis pelas constantes emendas à Constituição?
Muitos pensam que mudar a Constituição é uma forma de ampliar, ou melhorar as condições de vida do povo brasileiro. Mas é um ledo engano. Todos os grandes princípios humanitários do nosso século estão na Constituição. A constituinte deu ao povo brasileiro todo tipo de liberdade, foi um enorme aprendizado na arte da política e na construção de uma sociedade democrática.
A Assembleia Nacional Constituinte foi um dos momentos mais bonitos da história do Brasil, e estabeleceu conceitos importantes, mas muitas emendas chegam justamente para retirar direitos. O direito de greve, por exemplo, está consagrado ali. O trabalho precarizado é condenado na Constituição, mas temos hoje tentativas de perpetuar formas do próprio trabalho escravo. Se adotarmos os princípios na forma como estão hoje, tudo isso seria combatido.
Vivenciamos, ao longo de 35 anos, diversas mudanças no cenário político em decorrência da própria Constituição. Qual o senhor diria que foi a mais importante?
Do que eu reconheço como avanço, acho que o maior foi quando a política avançou na consideração de assegurar que os setores discriminados teriam maior possibilidade de participar do parlamento. Quando se definiu que partidos com mais negros e com mais indígenas teriam um percentual maior do fundo eleitoral. Em comparação com aquela época, o número de negros hoje no parlamento aumentou muito, em especial nas assembleias legislativas. E isso foi justamente graças a uma Constituição que reconheceu essa questão e permitiu o apoio aos setores mais discriminados no fundo eleitoral.
Lá, na Constituinte, nós já apontamos o compromisso de combater todo tipo de preconceito e garantir a participação cada vez maior da sociedade. Com os tempos, a lei permitiu justamente contemplar esses setores tão discriminados em sua representação no Congresso. Infelizmente, o que parece é que estão tentando revogar isso.
Existe a possibilidade de, no futuro, precisarmos incluir novos mecanismos na Constituição para se adequar ao contexto da evolução do mundo digital?
Entendo que sim, teremos que trabalhar nesse sentido especialmente para tratar dos efeitos da inteligência artificial, que já faz parte da nossa realidade. O caminho é justamente aceitar a evolução dos tempos, a modernidade, as novas tecnologias e trabalhar em um processo, discutindo com a sociedade brasileira, de adaptação da lei ao século 21.
Com a chegada da inteligência artificial, vemos que tudo no mundo está mudando. Não adianta ficarmos de braços cruzados. Existem, por exemplo, programas que projetam a imagem de uma pessoa idêntica a você, com a voz igual à sua, falando seu sotaque, mas dizendo algo que você jamais diria. Isso é o tipo de coisa que será utilizada cada vez mais, e precisamos de instrumentos para dar uma resposta.
No mundo do trabalho também chegará o momento de construir um novo estatuto do trabalho baseado nessa realidade. Temos hoje a chegada dos novos aplicativos, da uberização, da conceituação do trabalho intermitente. O mundo já faz esse debate, mas sempre entendendo que a tecnologia é fundamental.
Que futuro o senhor enxerga para a Constituição?
Nossa Constituição tende a um futuro secular. Hoje ela faz 35, mas espero que ela consiga chegar aos seus 100 anos sem sofrer grandes mudanças. Agora, é necessário entender que simplesmente mexer na Constituição não vai resolver os problemas do país.
Temos uma Constituição moderna e atual, mas os próximos passos são mexer na lei complementar e na lei ordinária, avançar no atendimento dos interesses da população, ainda mais em um país que ainda tem 30 milhões de pessoas vivendo em situação de insuficiência alimentar, com mais de 10 milhões de trabalhadores desempregados e outros 30 milhões na informalidade.
A Constituição é um instrumento da democracia, e pode ser alterada pela própria democracia, salvo nas cláusulas pétreas. Tantas emendas constitucionais já foram apresentadas, e outras tantas virão, com novas mudanças. Cabe a nós permanecermos vigilantes para que qualquer emenda constitucional não venha a retirar direitos do povo brasileiro, e sim ampliar direitos.