Eduardo Militão
Parlamentares e cientistas políticos acreditam ser impossível e até desnecessário zerar a fila de 2.472 projetos à espera de votação nos plenários da Câmara e Senado, mesmo que a ideia seja rejeitar a maior parte das propostas. Entretanto, eles defendem que as mesas têm que fazer uma melhor seleção das matérias com alto impacto social e, enfim, colocar as proposições para receberem o “sim” ou o “não” de deputados e senadores.
O levantamento do Congresso em Foco mostrou que a matéria mais antiga no plenário da Câmara foi apresentada em 1983. No Senado, a proposta é de 1995. Ouvidos pelo site, os congressistas e especialistas destacaram a necessidade de que o parlamento seja avaliado mais pelo aspecto qualitativo do que por uma postura quantitativa de uma “fábrica de leis”.
O professor José Álvaro Moisés, doutor em Ciência Política e diretor do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), entende que a Constituição de 1988 deu força demais ao Executivo em detrimento do Legislativo, a exemplo das Medidas Provisórias e outras prerrogativas que permitem ao governo legislar praticamente sozinho.
Na opinião do especialista, isso se soma ao fato de os procedimentos para colocar matérias em votação serem concentrados demais na Mesa Diretora e nos Colégios de Líderes. “Se o Congresso quiser recuperar uma parte de seus poderes, tem que fazer reformas no regimento interno e no modo de as Mesas funcionarem com o colégio de líderes”, avalia Moisés.
O cientista político critica o fato de dezenas de matérias importantes não serem votadas pelos congressistas. Para Moisés, elas ficam no “limbo” porque nada é decidido sobre aqueles temas.
O coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Congresso (Necon) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), o doutor em ciência política Fabiano Guilherme Santos, não se assusta com a quantidade de projetos na fila do plenário. “Sempre vai ter muita coisa. Esse número não é discrepante com o que normalmente se encontra. É compatível com o que a gente vê em outros anos.”
Ele afirma que nenhuma teoria democrática afirma que o Congresso tem que votar tudo o que as pessoas acham que deve. “Existe discordância? Existe interesse? Enquanto não solucionar o impasse, não vota”, conta Santos, para quem às vezes é preciso maturar uma ideia em vez de se optar pelo ‘sim’ ou pelo ‘não’ no painel do plenário.
O professor Moisés concorda com a falta de seletividade de propostas. Mas ressalta a importância das normas no dia a dia da população. “A função é basicamente fazer leis e controlar o Executivo. Agora, fazer leis é transformar demandas da sociedade em norma. E isso é extremamente importante”, avalia o diretor do núcleo de pesquisa da USP.
Impopularidade
O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) defende que os parlamentares saiam de cima de muro para enfrentar alguns temas. “A favor ou contra, popular ou impopular, vota tudo”, diz ele. Apesar disso, reconhece a existência de “muita bobagem” em propostas na fila de deliberação.
O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) afirma que, em busca de reeleição, diversos políticos seguem uma lógica que entope os plenários de projetos irrelevantes.
“É uma cultura dominante em que a estatística é decisiva para a reeleição do político. Você tem a estatística da presença em plenário. Tem gente que faz questão de presença integral e absoluta, não importa se está acontecendo algo em outro lugar que exija a presença dele. Você tem a estatística da produção, não importando a qualidade. É um número de projetos apresentados para exibição na campanha eleitoral.”
O líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT-SP), diz ser necessário mudar o regimento interno como único meio de impedir o excesso de apresentação de projetos e, consequentemente, de limpar a pauta dos plenários. Defende que o parlamentar seja obrigado a indicar onde se encaixa a proposta apresentada no arcabouço de leis já existentes no Brasil.
Lei pra quê?
Miro defende que a Mesa passe a “guilhotina” nas propostas flagrantemente inconstitucionais para que elas sequer comecem a tramitar. Mas entende que o que já está no plenário deveria ser deliberado. “Não é deixar em estoque, não. Teria que ser derrubado no início para não tramitar. Mas, a partir do momento em que está pronto para a ordem do dia, deve ser votado e rejeitado se for o caso.”
Miro Teixeira vai além: afirma que determinadas propostas não precisam virar lei; basta um pedido formal do Congresso para o Executivo passar a executar a política pública desejada.
O projeto de lei 1.273/07, aprovado na Câmara e hoje no Senado, por exemplo, quer que a rede pública imunize crianças também contra a hepatite A, meningite C e outras doenças cujas vacinas só são encontradas em clínicas particulares. Para Miro, não é necessária uma lei para isso. Basta uma indicação ao Ministério da Saúde para isso virar realidade.
“Não tem que ter lei pra tudo”, critica o deputado. “As pessoas não amam o próximo por causa da lei, mas o pai ama o filho por causa da natureza. As pessoas convivem civilizadamente sem ficar pensando em artigos de lei.”
Existem 181 mil leis no Brasil, muitas delas conflitantes e contrárias à Consituição, segundo o Grupo de Trabalho de Consolidação das Leis da Câmara. Vaccarezza, que coordenou o GT, diz que é preciso reduzir o número de regras no pais para um terço ou um quarto do atual. “Nos países desenvolvidos, você leva um ano para aprovar uma lei. Aqui é uma por semana. Temos que acabar com essa parafernália de votar todo dia”, critica Vaccarezza.
O oposicionista Gustavo Fruet (PSDB-PR) faz a mesma crítica. “É feita uma análise do trabalho do Legislativo pela quantificação.” O deputado pondera que já foram feitas diversas mudanças legais nos últimos quatro anos. Só nesta legislatura, foram 11 emendas constitucionais. Na passada, 14. “Não conseguimos ainda estabilizar o nosso sistema, tanto que isso gera judicialização e conflito entre os três poderes”, diz Fruet.
Demóstenes acredita que a cultura da fabricação constante de normas é um fato consumado com o qual devemos nos acostumar. “Não vai mudar, a cultura nossa é lusitana. Nós nos acostumamos a resolver tudo com lei e vamos continuar fazendo assim. É negativo, mas é a realidade.”
Vaccarezza diz que a parte burocrática do direito romano foi potencializada em Portugal e no Brasil. “Aqui, infelizmente ainda é a terra do carimbo. Não precisamos de tantas leis.”
Seletividade
Fruet entende haver mais pressão da sociedade organizada para a votação de interesses específicos, principalmente depois que a Câmara passou a analisar matérias em sessões extraordinárias sem o trancamento de pauta de Medidas Provisórias. “Essa abertura fez com que muitos interesses pressionassem, e é legítimo isso”, diz Fruet. Ele lembra que a seleção das matérias é prerrogativa dos presidentes e que sempre haverá um “choque” entre a presidência e os grupos de pressão da sociedade.
O senador Renato Casagrande (PSB-ES) é outro que não se preocupa com o estoque de projetos, mas com a falta de critério nas votações. “Você pode selecionar em torno de 20 ou 30 matérias que são importantes e que você precisa votar”, diz ele. “Ter matéria para ser votada não é problema. O que falta ao Congresso não é votar, é uma definição de prioridades daquilo que é de interesse da nação. E estabelecer um cronograma de votação.”
Casagrande cita a reforma do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a lei de licitações, a reforma do Código de Processo Penal, a lei geral do cooperativismo.
O ex-líder do PT na Câmara, Maurício Rands (PE), afirma que as mesas devem parar com a ideia de só votar aquilo que possui consenso. “Para botar na ordem do dia, não tem que ter consenso pleno. Matérias que são de interesses apenas dos trabalhadores não têm consenso pleno. Então parte pro voto, para depois as pessoas poderem se justificar para a sociedade. Quem quiser, que rejeite.”
Entre os temas importantes não votados, Rands cita a redução da jornada de trabalho para 40 horas – ainda que gradual – e a taxação das grandes fortunas, apresentada em 1989 no Senado e à espera de votação no plenário da Câmara desde 2000. A medida é considerada fundamental para melhorar a distribuição da riqueza.
Estabilidade e amadurecimento
Casagrande acha perigosa a possibilidade de tudo o que está na fila ser aprovado. Isso mudaria a legislação várias vezes e rapidamente. O senador acredita que, mesmo para rejeitar matérias, não deve ser cobrada a extinção da fila de propostas dos plenários.
“A lentidão na apreciação dos projetos é para que possa preservar um pouco e estabelecer alguma estabilidade em nosso arcabouço legal em todas as áreas”, diz Casagrande. “A velocidade de votação de projetos não deve ser uma característica do Parlamento.”
O deputado Fruet diz que o parlamento deve aprender a dizer “não”, mas acredita que algumas propostas precisam de tempo para amadurecer. Ele exemplifica a confusão em torno do pagamento de royalties aos estados e prefeituras atualmente beneficiados com a exploração de petróleo. A matéria foi aprovada na Câmara, mas gerou protestos no Rio de Jeneiro, com milhares de pessoas nas ruas da cidade.
“A gente não age só na crise. A gente tem que amadurecer a proposta e, às vezes, tem que explicar porque a gente não vai votar”, opina Fruet.
O líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio (AM), destaca que a tramitação mais lenta melhora os projetos. “Essa aparente lentidão do parlamento também encerra sabedoria. Quando eu apresento uma matéria, ela passa por várias mãos, várias cabeças e, quando meu projeto é aprovado, é aprovado melhor do que geralmente quando eu entrei com ele”, reflete.
Virgílio acredita que diversos temas são muito complicados para serem votados por causa do baixo consenso, como a reforma tributária. Mas entende que isso faz parte do processo de maturação das ideias e de conflitos regionais a serem resolvidos.
Efeito Sarney
Virgílio diz que fatos recentes também atrapalham a votação de bons projetos. Para ele, o clima eleitoral antecipado gera distorções. “Temos que suspender essa bobagem da urgência da petro-sal”, enumera, em referência a uma das matérias sobre a exploração de petróleo na camada do pré-sal.
O líder do PSDB no Senado avalia que a agenda também não é boa devido à falta de legitimidade do presidente da Casa, José Sarney (PMDB-AP), que, no ano passado, viveu sob o fogo de denúncias de nepotismo e emprego de funcionários fantasmas. “Aquela crise deixou sequelas. O presidente não reúne os líderes, porque há um desentrosamento grande.”
Virgílio conta que as reuniões para definição de pauta são inócuas porque Sarney não dialoga com ele e com o líder do DEM, José Agripino (RN), o que impede um consenso mínimo antes de chegar ao plenário. “Quando eu falava para o presidente renunciar é porque aquilo possibilitaria uma
solução que não levasse para esse impasse”, conta o tucano.
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