Ainda sem um relatório formalmente apresentado e com questionamento sobre a votação de uma legislação sobre desinformação em meio à pandemia, o projeto que cria a Lei de Liberdade da Internet está longe de chegar a um texto de aceitação geral. O PL das Fake News, como ficou conhecido, enfrenta uma série de resistências por empresas e organizações e entre os parlamentares ainda não se chegou a um consenso mínimo.
Mais de trinta entidades, entre elas Facebook, Google, Twitter, WhatsApp, agência Aos Fatos e Transparência Brasil, se uniram no início de junho para pedir o adiamento da votação. As entidades, que possuem interesses divergentes em torno da matéria, consideraram que a análise está ocorrendo de modo precipitado e coloca em risco a liberdade de expressão online.
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Para Bia Barbosa, integrante do conselho diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e da Coalizão Direitos na Rede, há o risco de se aprovar uma legislação que, por melhor intencionada que seja, viole os direitos de usuários na rede. Os principais pontos que preocupam a Coalizão são: 1) a identificação em massa dos usuários, e 2) a possibilidade de criminalização dos usuários.
A última versão do texto define que os provedores de aplicações de internet deverão exigir dos usuários identificação e localização, inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido. A Coalizão Direitos na Rede vê com ressalvas esse dispositivo, que também abrange aplicativos de informação privada. “Viola o principio da mínima coleta de dados necessária”, disse Bia Barbosa em entrevista.
Sobre a criação de novos tipos penais, Bia Barbosa considera que, na tentativa de coibir o mau uso feito da rede, pode-se resvalar na criminalização de condutas de usuários comuns. “Num momento de avanço do autoritarismo no Brasil como a gente vivencia hoje, é preciso que o Parlamento tome muito cuidado ao criar novos tipos penais ou modificar leis criminais”, avaliou ela. Esse debate cuidadoso, cuja finalidade é desmontar a indústria da desinformação no Brasil, está ocorrendo de forma acelerada desde que o texto foi apresentado.
Votação remota
A posição inicial apresentada pela Coalizão Direitos na Rede e outras empresas e entidades era de que a votação de um tema tão complexo e abrangente é difícil de ser acompanhada a distância. No início da pandemia, o Congresso estabeleceu que as votações seriam centradas em temas de enfrentamento à covid-19 e seus efeitos. Sem comissões, estão ocorrendo apenas votações virtuais dos Plenários da Câmara e do Senado.
“Num contexto de Congresso fechado, é praticamente impossível que essa escuta seja feita de maneira qualificada. A gente entende que esse processo não deveria estar sendo feito neste momento, principalmente da maneira acelerada como ele está acontecendo desde o início”, disse Bia.
A matéria foi apresentada no dia 15 de maio pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e ganhou impulso após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dar prosseguimento no inquérito que apura a atuação de organização responsável por disseminar notícias falsas. Foram alvos da Polícia Federal empresários, influenciadores digitais e deputados aliados do presidente Jair Bolsonaro.
Principais pontos
O relator do projeto, senador Angelo Coronel (PSD-BA), ainda não apresentou formalmente seu parecer, mas uma minuta de relatório circula entre senadores desde a semana passada. Coronel preside a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga as fake news no Congresso Nacional.
O Congresso em Foco ouviu relatos de que, na reunião de líderes do Senado da última segunda-feira (8), foram apresentadas pelo menos cinco versões diferentes sobre o tema. O projeto não foi incluído na pauta desta semana, apesar de expectativa de que isso pudesse ocorrer.
Uma das versões do parecer foi apelidada de “PL Black Mirror”, em referência à série que aborda a tecnologia em futuros distópicos. O texto trazia, por exemplo, a possibilidade de pontuação dos usuários de redes sociais.
O texto original foi alvo de críticas gerais de diversos setores e, portanto, não deverá ir à votação tal como foi redigido. O próprio autor apresentou na semana passada uma nova versão (íntegra) em que tentou compatibilizar divergências. Os principais pontos desse texto são:
- Exigência de entrega de documentos de identificação e localização pelo usuário aos provedores;
- Obrigatoriedade de transparência das plataformas, com produção de relatórios trimestrais;
- Identificação de conteúdo patrocinado e de contas automatizadas;
- Notificação do usuário na abertura de processos de análise de conteúdo e de contas violadoras dos padrões de uso, com possibilidade de recurso;
- Rotulação de bots (aplicações de programa de computador que simulam ações humanas repetidas vezes de forma padrão, robotizada);
- Restrições ao uso e comercialização de ferramentas externas aos provedores de mensageria privada voltadas ao disparo em massa de mensagens;
- Publicidade em relação aos anúncios e conteúdos impulsionados por órgãos públicos.
Outro ponto relevante do novo texto do autor é a atribuição, dada a um grupo de trabalho multissetorial coordenado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI), de conceituar conteúdo desinformativo dentro de um prazo de um ano. Além disso, o texto prevê a elaboração, pelo mesmo grupo, de uma proposta de código de conduta de combate à desinformação e de uma proposta de código de boas práticas a verificadores de fatos independentes – as agências de checagem.
Até o momento, quase 80 emendas foram apresentadas por senadores e algumas delas propõe mudanças radicais do texto.
Pressa em aprovar legislação
Segundo Alessandro Vieira, a pressa em aprovar a matéria se deve à preocupação com as fake news na pandemia de covid-19. A votação rápida também é defendida pelos presidentes da Câmara e do Senado, porém qualquer legislação com esse teor precisará de um vacatio legis para adequação às novas normas pelas empresas.
A suspeita é de que os parlamentares estariam preocupados com o processo eleitoral que se aproxima e visam aprovar uma legislação que possa ser aplicada já em 2020. Além disso, deputados e senadores são vítimas cotidianas de estruturas de ataques nas plataformas digitais, o que os leva a querer dar uma resposta rápida ao problema.
“A gente fazer esse processo com a corda no pescoço em relação ao tempo não ajuda na qualidade da discussão e na profundidade que ela precisa ter”, disse Bia Barbosa, da Coalizão Direitos na Rede.