Breno Vasconcelos * e Thais Veiga Shingai **
A Emenda Constitucional nº 132, de 2023, ao reformar o sistema tributário brasileiro, criou três novos tributos: o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), incidentes sobre as operações com bens e serviços de um modo geral, no formato de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) dual; e o Imposto Seletivo (IS), que pode ser cobrado pela União sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Nesse novo desenho de sistema tributário, IBS e CBS representam a tributação geral do consumo, que, em linha com as melhores práticas internacionais, deve ser a mais uniforme possível sobre todas as operações com bens e serviços. Já o IS é um tributo especial sobre o consumo, pois cobrado sobre determinados bens e serviços, em função de sua nocividade.
O IS é um tributo propositadamente discriminatório e seletivo na incidência, mas sua seletividade não está ligada à essencialidade do bem ou serviço, como prevê hoje a legislação aplicável ao ICMS e ao IPI. Sua seletividade está relacionada, de outra sorte, aos prejuízos à saúde e ao meio ambiente causados por determinados hábitos de consumo.
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Assim, o sistema antigo modulava a seletividade de acordo com a essencialidade dos bens (bens essenciais seriam desonerados, bens “supérfluos” deveriam ser mais tributados), enquanto o novo sistema irá modular a seletividade conforme a prejudicialidade de alguns bens e serviços.
O critério de essencialidade foi eliminado do sistema tributário com o objetivo de tornar a tributação sobre o consumo mais equitativa e eficiente, e tendo em vista as críticas da literatura internacional[1] no sentido de que sua aplicação não tem embasamento técnico e não cumpre a finalidade de proteção das classes mais desfavorecidas. É, assim, um passo importante para a simplificação e a modernização do sistema tributário brasileiro.
Há, porém, um ponto de atenção: parte dos bens sujeitos ao IS nos moldes do Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68, de 2024, em razão de sua nocividade à saúde ou ao meio ambiente, estão hoje sujeitos a alíquotas majoradas de IPI e ICMS, em função do princípio da essencialidade, pois considerados produtos supérfluos, como é o caso dos cigarros e das bebidas alcoólicas.
Soma-se a isso o fato de que o IS será cobrado integralmente a partir de 2027, mas o ICMS, carregado de suas alíquotas seletivas (majoradas), começará a ser substituído apenas em 2029, tendo sua transição finalizada apenas em 2032.
Assim, caso não seja criada uma regra de transição específica para a instituição do IS, sua cobrança já a partir de 2027 onerará excessivamente tais bens, pois haverá uma cumulação de seletividades, do IS e do ICMS. Para piorar o cenário, em alguns casos esses bens poderão também estar sujeitos à seletividade do IPI, que não será extinto em 2027, mas somente terá suas alíquotas reduzidas a zero para bens que não competem com a Zona Franca de Manaus (ZFM).
Vale dizer, bens sujeitos tanto à seletividade com base na nocividade (IS) como à seletividade com base na essencialidade (ICMS e IPI) serão duplamente onerados durante a transição para o novo sistema, penalizando excessivamente seus consumidores e a economia como um todo.
A convivência simultânea do IS com a seletividade presente no ICMS (e, em alguns casos, do IPI) de 1º de janeiro de 2027 a 31 de dezembro de 2032, além de onerar excessivamente o consumo, gerará custos adicionais para as empresas e afetará a competitividade da indústria brasileira, na contramão das diretrizes da reforma tributária de promover a estabilidade jurídica e reduzir litígios.
A “dupla seletividade”, ademais, contraria o pressuposto da reforma tributária de transição gradativa para o novo modelo de tributação do consumo, sem mudança abrupta para as empresas e mantendo-se a carga tributária atual.
Diante desse contexto, a própria Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (SERT), durante a coletiva técnica de apresentação do PLP 68 realizada em 25 de abril de 2024, reconheceu a necessidade de uma regra de transição específica para o IS. Conforme as afirmações de membro da SERT nessa ocasião, o IS deve ser implementado gradativamente, isto é, não deve ser cobrado em sua integralidade enquanto o ICMS ainda estiver em vigor.
Portanto, é necessária a inclusão, no PLP 68, de regra de transição específica para os bens tributados pelo IS, de modo a evitar que sejam simultaneamente submetidos a duas sistemáticas distintas de seletividade (a antiga, do ICMS e do IPI, e a nova, do imposto seletivo).
* Breno Ferreira Martins Vasconcelos é doutor em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper e do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV. Sócio em Mannrich e Vasconcelos Advogados.
** Thais Romero Veiga Shingai é doutoranda e mestra pela FEA/USP, programa de controladoria e contabilidade. MBA em Gestão Tributária pela Fipecafi. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper. Professora no Insper e na Fipecafi. Sócia em Mannrich e Vasconcelos Advogados.
[1] Sobre o tema, vale conferir os comentários feitos pelo professora Rita de La Feria