Bajonas Teixeira de Brito Junior*
Este artigo faz algumas considerações sobre o processo de assédio moral movido por um grupo de funcionários públicos bem remunerados contra o site Congresso em Foco. Preocupa-me não apenas a atitude política que esses processos representam, mas, também, o desserviço que prestam ao distorcerem e descaracterizarem a noção de assédio moral.
O assédio moral ocorre nas relações em que uma parte mais fraca é, sistematicamente, vitimada por condutas abusivas de outra, mais forte. Por “mais forte” se deve entender seja a posição ocupada (um chefe em relação a um subordinado hierárquico), seja o número (o que se exemplifica com um grupo de colegas de trabalho contra um deles, ou um grupo de alunos contra um professor). Assim, usando os exemplos, o assédio moral pode ser descendente (chefe), horizontal (colegas), ou ascendente (alunos). O pioneiro na sua identificação e caracterização, o psicólogo sueco Heinz Leymann, estava preocupado precisamente com os indivíduos menos assimiláveis aos modelos massificados de personalidade e, por isso, mais expostos às práticas degradantes nos ambientes de trabalho.
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Dificilmente poderemos dizer que o funcionário que aufere a modesta remuneração de R$ 28.000.00 mensais, sem contar os décimos terceiros, seja uma parte fragilizada nas relações de trabalho. Se a minha calculadora não se engana, 13 x 28.000 é igual a R$ 364.000.00, ou, trocando em miúdos, com o mínimo valendo R$ 545, 667 salários mínimos. Não é pouca coisa. Principalmente num país em que a miséria é tão volumosa e a ineficiência do serviço público, tão proverbial. Quem expõe publicamente essa situação, baseando-se no fato de que ela fere a Constituição Federal, pratica assédio moral? Estarão as vítimas dessa exposição atormentadas por sofrimentos psíquicos, padecendo de depressão, desnorteadas quanto a sua auto-estima? Supondo que sim, o que as teria envergonhado? O que delas foi mostrado que as poderia vexar? O fato de receberem demais?
Por enquanto, já que voltaremos a isso adiante, lembrando que Leymann afirma que o assédio moral é uma forma de psicoterror (psychic terror), que deve ser continuada e com incidência sobre os elos mais frágeis das relações de trabalho, não vemos como falar em assédio moral. Sobretudo, é preciso que os indivíduos estejam engajados numa relação de trabalho comum o que, decididamente, não é o caso.
Ao valer-se dessa caracterização, banaliza-se e desgasta-se uma noção que seria fundamental para alterar as relações abusivas e autoritárias que têm caracterizado as relações de trabalho no Brasil, tanto no âmbito público como no privado. Em termos populares, se trata de avacalhar. E é bom lembrar que essa avacalhação começou em 26 de maio deste ano, quando o Conselho Nacional do Ministério Público recebeu uma representação da Advocacia Geral da União (AGU) acusando o MPF de implantar o “império do terror”, isto é, de praticar o assédio moral contra os advogados da União, ao embargar os interesses do Estado brasileiro na liberação das obras da Usina de Belo Monte. É lamentável que não se perceba o enorme prejuízo que esse tipo de carnavalização jurídica impõe às instituições do país.
Os efeitos dessas práticas abusivas e delirantes são igualmente nefastos em suas consequências políticas. Passemos a elas.
Quando o Ministério Público pediu a prisão de 28 policiais militares de São Gonçalo, envolvidos em processos julgados pela juíza Patrícia Acioli, o procurador geral de Justiça, Cláudio Soares Lopes, afirmou: “Se alguém pensou que o assassinato da juíza iria intimidar a justiça como um todo, uma resposta efetiva teria que ser dada no contrário”. Em termos semelhantes, o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, comentou agora os processos contra o Congresso em Foco: “Em função de ser um órgão de imprensa que não tem um respaldo econômico e financeiro grande, o que se quer é tentar inibir. É calar a imprensa. É um atentado contra a liberdade de imprensa.” Ou seja, se trata de intimidar o trabalho investigativo da imprensa.
Essas declarações fazem lembrar, ainda, a recente afirmação do deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ), que presidiu a CPI das Milícias em 2008 em que foram indiciadas mais de 200 pessoas, e que se viu obrigado a deixar o país diante da escalada de ameaças de morte. Em entrevista à CBN, o parlamentar afirmou que não iria se intimidar com as ameaças de morte que vinha recebendo. Freixo foi figura fundamental, com a sua coragem, para fazer luz sobre as atividades criminosas das milícias e, com isso, apontar e circunscrever as diversas faces desse câncer social que se espalha pelo Rio de Janeiro.
É interessante observar como as coisas se articulam, isto é, como a sinfonia da violência tende a harmonizar os seus instrumentos. Assim, na mesma entrevista, Freixo mostra a ligação entre as ameaças que vem sofrendo e o assassinato da juíza Patrícia Acioli:
“Recebi essa informação na sexta-feira do Serviço de Inteligência da PM. As ameaças aumentaram muito depois da morte da juíza Patrícia Acioli. Essa é uma informação que veio direto da PM, por isso tenho que levá-la a sério. Estou com a segurança reforçada e tomo as minhas precauções. Estou mudando a rotina e o que nos resta é aumentar o cuidado”.
Justiça atuante, fiscalização parlamentar e imprensa crítica são instituições fundamentais na democracia e no Estado de Direito. Não é curioso que nos três casos sofram tentativas de intimidação? O que devemos pensar se, como indicam as citações acima, essas três instituições se vêem acuadas pela intimidação? No mínimo, que alguma sombra muito sinistra vem se espalhando sobre as relações sociais brasileiras.
Nos três casos, temos como elo comum o fato de que essas instituições, ou melhor, alguns indivíduos dentro delas (parlamentares, juízes e jornalistas), agiram com a inteira coerência que se espera deles. Sem desconhecerem os riscos, mas sem se intimidarem com eles, expuseram situações que poderiam ter ficado encobertas e distantes da consideração pública. Tudo que permanece oculto atrás de uma densa intransparência, para usar um termo já meio esquecido do filósofo alemão Jürgen Habermas, é sempre contrário ao espírito e à letra da democracia.
Na democracia, parte significativa da vida social é pública e, portanto, tem que ser objeto de consideração, fiscalização, informação e discussão abertas. A função da imprensa é publicar, tornar a informação, bem essencial da democracia, disseminada no espaço público. A informação é um patrimônio da democracia. Os segredos, a ocultação de dados, os tratados secretos, os documentos sigilosos, sempre foram parte da armadura dos sistemas totalitários.
Mas não deixa de ser curioso que no Brasil algumas coisas sejam muito claras. Por exemplo, o valor do salário mínimo. Ele é discutido amplamente, divulgado em todos os meios de comunicação, fazem-se comparações curiosas sobre seu poder de compra, etc. Para os milhões que dependem dele, a revelação de seu valor não representa assédio moral. O país todo sabe quanto recebe quem ganha um salário mínimo. Não se vê nenhum mal nisso. Ninguém vê nada de absurdo, de atentado aos direitos, de violação da Constituição ou da dignidade da pessoa humana. Ao contrário, sobre os salários máximos sabemos muito pouco. Aqui reina uma espessa cortina de obscuridade, envolvendo um reino de sombras que parece sofrer violentamente com a mínima incidência da luz do dia.
Mas essa fobia é típica dos habitantes das trevas, que se esgueiram nos fundos das cavernas, nas cavidades abissais dos oceanos ou nas criptas subterrâneas dos castelos da Transilvânia. O conde Drácula e seus convivas são sabidamente avessos aos benefícios da luz. E, no entanto, água, ar, luz e calor são, como toda criança aprende na escola primária, elementos essenciais à propagação da vida. Escuridão e temperaturas cadavéricas formam, ao contrário, o ecossistema ideal do reino dos mortos. Mas no Brasil, cá entre nós, esse reino das obscuridades oportunas é o habitat natural de gente muito viva.
Em tudo isso, além de lamentar que exista em nosso país criaturas para as quais a exposição à luz seja tão mortífera, que sintam-se atingidas tão dolorosamente ao ponto de só poderem esboçar uma reação raivosa, o mais grave é ver como atuam para desfigurar uma noção que seria tão decisiva para civilizar as relações sociais brasileiras. Começa-se hoje, muito timidamente, a reconhecer no Brasil o valor e a consistência jurídica e médica da noção de assédio moral. Aos poucos se está avançando no sentido de assentar a sua cidadania jurídica.
Lançando mão de forma abusiva, penso eu, da noção de assédio moral em contexto em que ela decididamente não se aplica e, com isso, desgastando-a e banalizando-a, se pratica uma espécie de depredação, de vandalismo jurídico. Tudo leva a crer que estamos mesmo diante do que o presidente da OAB classificou como “litigância de má fé”. E, sendo assim, não caberia apenas reconhecer sua improcedência, mas também punir exemplarmente os depredadores.
*Doutor em Filosofia, autor dos livros Lógica do disparate, Método e delírio e Lógica dos fantasmas. Foi duas vezes premiado pelo Ministério da Cultura por seus ensaios sobre o pensamento social e cultura no Brasil. É coordenador da revista eletrônica, Revista Humanas , órgão de divulgação científica da Cátedra Unesco de Multilinguismo Digital (Unicamp) e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Ufes