Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek *
Entre 2012-2022:
- 247.293 partos em meninas de até 14 anos;
- O Código Penal (Art.217-A) tipifica todas estas gravidezes como estupro de vulnerável;
- Deste grupo, 73% são de meninas negras e 96% dos partos ocorreram após 22 semanas.
(Fonte: MS/SVS/CGIAE-SINASC – via @jnascim.)
Legislar sobre o aborto não torna nenhuma bancada mais evangélica, tampouco evita que o abortamento provocado aconteça. Legislar sobre o aborto, como querem os atuais deputados, da forma como o fazem, não resolve uma questão tão densa, ao mesmo tempo que promove violência.
O aborto sempre existiu na história humana, com visível incremento em tempos de machismo e misoginia, épocas em que as mulheres foram tidas e tomadas como infra-humanas. Em tais períodos e espaços, ser mulher sempre foi um risco, em vez de ser uma benção.
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Uma lei que restringe não evita que o abortamento aconteça, só o torna clandestino. Na clandestinidade a mulher, especialmente a preta e pobre, experimenta outro tipo de violência – a dos carniceiros. Parece, então, que os deputados esqueceram que a lei nem educa, nem transforma; quando muito ela pune. O fato de tornar ilegal o abortamento só eleva o sarrafo da hipocrisia, não diminuindo sua prática. Hipocrisia esta, diga-se de passagem, que se mostra também no acesso aos cuidados médicos mínimos por quem pode pagar, e na sujeição a todo tipo de risco para quem faz em sofás velhos e sujos em barracos.
No projeto de lei sobra mistificação e falta razoabilidade. Mistificação porque tais deputados evangélicos acham que, na proibição do abortamento, será aberto um portal das bênçãos divinas sobre o país, inaugurando um tempo de prosperidade, ou, quem sabe, preparando o terreno para a chegada do messias político impregnado pela Teologia do Domínio, o qual conduziria a nação pra esta nova e auspiciosa era.
PublicidadeComo pode uma mulher, vítima de estupro, ser agora violentada pelo Estado? Ao apenarem, na lei, a mulher com o dobro da pena do estuprador, os deputados agem em duas frentes: primeiro, fomentam a propagação de grupos e de ações institucionais, como a do Conselho Federal de Medicina, visando coibir ou retardar os abortamentos legais até que, vencido o prazo, sejam considerados crime.
De igual modo a falta de razoabilidade se mostra no silenciamento da vítima. Ora, os casos de estupro são subnotificados no Brasil, por conta da cultura machista, da vergonha. Neste sentido, é justamente a indesejável gravidez que, em muitos casos, rompe o silêncio da mulher ao obrigá-la a procurar o Judiciário para realizar o abortamento. Proibir o aborto ao mesmo tempo em que amordaça as mulheres vítimas da violência, incentiva a cultura do estupro. O estuprador passa a se enxergar como alguém inalcançável pela lei, diante da ausência da denúncia.
Sem razoabilidade e sem ciência também. Será que os deputados da bancada evangélica sabem que na 6ª semana de gravidez, o que está no ventre feminino não difere muito de um girino? Será que eles sabem que somente após a 12ª semana é que o feto tem seu cérebro formado? Será que eles pensam que a alma humana habita nos gametas? Se assim for, terão que proibir a masturbação…
Nada do que se propõem a fazer tem a ver com a ciência. Ciência que deve (em parte) seu desenvolvimento ao protestantismo, com sua era da liberdade. Ciência que aflorou especialmente após as luzes (Iluminismo) na França e a iluminação (Esclarecimento) na Alemanha. Uma bancada que se diz do Evangelho não deveria ser obscurantista. Não deveria sombrear, tampouco entrevar alguma coisa. O Evangelho é luz; ele sempre ilumina. Não é esta a essência do relato presente em Mateus 4:16a: “o povo que estava sentado em trevas viu uma grande luz”? Se algo não ilumina, se algo esconde, não pertence ao Evangelho. Pertence ao caráter do Evangelho trazer luz, e não escuridão.
Outro aspecto importante a assinalar é a falta de misericórdia, de compaixão com as mulheres vítimas de violência. Alguns deputados evangélicos procuram justificar a adesão a este esdrúxulo projeto de lei mediante uma justificação teológica. Se engravidou foi porque, ao fim e ao cabo, Deus permitiu, porque Deus quis. Citam casos de bons cidadãos como exemplos, quando na verdade eles são a mais pura exceção! Ora, Jesus jamais deu permissão para violação dos corpos, quanto mais infantis! Gravidez oriunda de estupro nunca foi sinal da Providência divina. Ela sempre foi marca da mais horrenda violência e da completa ausência do Estado.
Interessa assinalar que tais deputados são contrários à educação sexual nas escolas. A mesma que evita gravidezes indesejáveis e que ajuda as meninas a identificar comportamentos abusivos. Não são poucos os casos de estupro de vulnerável cuja gravidez é descoberta “tardiamente” justamente porque a criança não tem ciência do que está se passando com ela. Para tais deputados, ainda que com risco para uma menina de 10, 11 anos, levar a termo uma gravidez, esta não poderá ser interrompida, quando tardiamente descoberta, sob risco de criminalização da criança!
Não há misericórdia, compaixão com a vítima. Há instrumentalização política da dor de mulheres e crianças, violadas no sagrado espaço do seu corpo, ou mesmo violentadas pelo abandono de machos que sabem fazer filhos na mesma proporção que se mostram irresponsáveis na hora de ter que assumi-los.
O que sobra neste projeto de lei é a subjugação do feminino. O medo (ou seria ojeriza?) que esta turma tem das mulheres. Quanto maior o empoderamento delas, mais ameaçados eles se sentem. No caminho rumo à Gileade (do Conto de Aia) brasileira, a subserviência do feminino não é um acidente: é um projeto. Uma vez alcançado o objetivo, as fogueiras serão acesas. Não é metáfora, viu? Caminhamos a passos largos para o período mais cruento do medievo. Ou interrompemos, como sociedade democrática, esta insanidade agora, ou seremos engolidos por ela: de dentro para fora.
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* Pr. Dr. Sérgio Ricardo Gonçalves Dusilek é mestre e doutor em Ciência da Religião (UFJF/MG), pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Filosofia da Religião, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF/MG) e pesquisador em Estágio de Pós-Doutorado pela UEMS (Bolsista CAPES); Pastor na Igreja Batista Marapendi (RJ/RJ); Professor do Seminário Teológico Batista Carioca. Autor de “Bíblia e Modernidade: A contribuição de Erich Auerbach para sua recepção” e co-organizador de: “Fundamentalismo Religioso Cristão: Olhares transdisciplinares”; “O Oásis e o Deserto: Uma reflexão sobre a História, Identidade e os Princípios Batistas”; e “A Noiva sob o Véu: Novos Olhares sobre a participação dos evangélicos nas eleições de 2022”.
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