Em todas as democracias, é possível denunciar, investigar e afastar o chefe do governo por graves irregularidades cometidas durante o exercício do mandato. A diferença é que, em linhas gerais, esse afastamento é bem menos traumático e tem base legal menos rígida no parlamentarismo do que no presidencialismo. Enquanto que, no presidencialismo, o impeachment do chefe do Executivo se fundamenta numa denúncia-crime concreta e que envolva diretamente o presidente, no parlamentarismo, não necessariamente.
Em vários países da Europa, o afastamento (por meio da moção de censura e perda de confiança) pode teoricamente se basear em qualquer motivo que desabone a conduta do primeiro-ministro e/ou reflita na falta de apoio popular. Se o Parlamento simplesmente não confia mais no primeiro-ministro, a instituição obriga-o a renunciar, juntamente com todo o gabinete.
As consequências para o chefe do governo também variam de país para país. No Brasil, o impeachment é, essencialmente, um processo político, dado que pressupõe crime de responsabilidade – e esses crimes, analisados pelo Senado (como violar a segurança interna ou atentar contra a lei orçamentária), não correspondem a ilícitos penais. Além disso, o crime de responsabilidade não acarreta sanção criminal, apenas política – prevista na Constituição e fixada na Lei 1079/50: a consequente perda do mandato e inelegibilidade. Nos Estados Unidos, o impeachment, também um processo político, acontece em casos de traição, suborno e outras “faltas graves” (não necessariamente penalmente puníveis). A pena é a perda do mandato. Já na Argentina, onde a lei é mais ampla, cabe o juízo político por crime comum e até mau desempenho do cargo.
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No caso do Brasil, a oposição, apoiada em pedido formal dos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Junior e Janaína Paschoal, quer o impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) baseada no argumento de que seria crime de responsabilidade a “pedalada fiscal” do governo em 2015, como é chamado o atraso de repasses a bancos públicos a fim de cumprir as metas parciais da previsão orçamentária. O pedido será analisado nos próximos dias pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que já rejeitou outros 20 pedidos diversos de impeachment, por falta de embasamento legal. Se o pedido em questão for acatado por Cunha, deverá ser criada uma comissão especial para elaborar o parecer – a ser votado no plenário da Câmara dos Deputados. Caso no mínimo 342 parlamentares decidam pela abertura do impeachment, o processo seguirá para a análise dos senadores.
O Senado – “tribunal” político do exemplo brasileiro – decidirá, então, se a pedalada fiscal de Dilma Rousseff se encaixa no capítulo VI, artigo décimo, inciso nove, da Lei 1079/50, segundo o qual é crime de responsabilidade “ordenar ou autorizar a realização de operação de crédito com qualquer um dos demais entes da Federação, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente” (incluído pela Lei nº 10.028, de 2000).
Levantamento feito pela Folha de S.Paulo mostra, no entanto, que as pedaladas fiscais, infelizmente, são corriqueiras no Brasil. Em qualquer governo a partir de 1995 – desde Fernando Henrique Cardoso (PSDB) até Lula (PT). “Os números da Caixa, relativos ao pagamento do seguro-desemprego e do abono salarial, mostram que, de fato, houve casos nos governos anteriores em que os montantes repassados pelo Tesouro foram insuficientes para o pagamento dos programas… Na virada de 2013 para 2014, por exemplo, o banco federal apresentava um déficit de R$ 4,3 bilhões com o pagamento desses benefícios… Entre 1999 e 2002, no governo FHC, o maior déficit, em valores corrigidos, foi o de R$ 918 milhões em maio de 2000, com o seguro-desemprego… Nos dois mandatos do ex-presidente… Lula…, de 2003 a 2010, os déficits caíram. O rombo mais expressivo, de R$ 750 milhões, ocorreu em novembro de 2007, com o abono salarial”.
Em outras palavras, o pedido de impeachment da presidente Dilma, nas bases atuais, ou carece de amparo legal ou poderia igualmente ter sido aplicado no passado, aos seus antecessores. Acontece que, no presidencialismo, diferentemente do parlamentarismo, um presidente enfraquecido, com baixa popularidade, como é o caso de Dilma hoje, ainda assim não oferece os elementos rigorosos de suporte para o impeachment.
E há ainda outra questão. Mesmo que o presidente da Câmara dos Deputados acate o pedido, a pedalada fiscal pode não envolver diretamente a presidente (como exige a lei), mas sim a equipe econômica. Sobre isto, mesmo Cunha se posicionou, recentemente: “O fato por si só de ter a ‘pedalada’ não significa que isso seja razão para um pedido de impeachment. Tem que configurar que há atuação da presidente num processo que descumpriu a lei. Isso que tem que ser analisado. Pode existir a ‘pedalada’ e não existir a motivação do impeachment”.
É certo que o Brasil enfrenta um momento difícil. Uma crise econômica num sistema político mais complexo – bem diferente da transição para democracia, em 1986. Hoje, há dois tipos de polarização – não a clássica PT vs. PSDB, mas também entre o Palácio do Planalto e o Congresso. Isso num ambiente onde o partido da presidente conta com menos cadeiras e onde a hiperfragmentação torna qualquer esforço para entender a motivação programática das 35 legendas com registro mera ficção. Apesar das dificuldades, a estrutura política de Dilma é incomparavelmente mais forte do que a do então presidente Fernando Collor de Mello, o primeiro processo de impeachment da América Latina. Basta lembrar que, em 1992, com o país ainda engatinhando na democracia, o recém-criado PRB tinha menos de 3% das cadeiras no Congresso.
Em conclusão, o que “apoia” o pedido de impeachment atual é a falta de apoio popular aliada a um ambiente politicamente e economicamente hostil. E estes não servem como base legal para o impeachment no presidencialismo brasileiro.