A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado vota, nesta quarta-feira (4), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2022, após sucessivos adiamentos. A chamada PEC do Plasma, apresentada por Nelsinho Trad (PSD-MS) e relatada por Daniella Ribeiro (PSD-PB), prevê alterações no art. 199 da Constituição Federal, permitindo a comercialização de plasma humano para o desenvolvimento de novas tecnologias e produção de medicamentos destinados ao Sistema Único de Saúde (SUS).
A proposta divide o Senado e a opinião de especialistas. O Ministério da Saúde, inclusive, já se posicionou contrário à proposta. A ministra Nísia Trindade defendeu no programa Conversa com o Presidente, no último dia 26, a continuidade da proibição de remuneração de doadores. Ela destacou o fortalecimento estatal para a coleta e o processamento de produtos hemoderivados, medicamentos feitos a partir do fracionamento do plasma, utilizados para o tratamento de doenças como hemofilia, Aids, câncer e imunodeficiências
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“O plasma faz parte do processo do sangue e é fundamental para o desenvolvimento de produtos que são usados para o tratamento de doenças importantíssimas. Mas o sangue não pode ser comercializado, de modo algum. Não pode ter remuneração de doadores, isso foi uma conquista da nossa Constituição. O senhor [Lula] se lembra bem das pessoas que vendiam sangue”, declarou Nísia.
O secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos, do Ministério da Saúde, Carlos Gadelha, ressaltou em entrevista ao Congresso em Foco que a proposta de emenda à Constituição vai contra a tradição de doação de sangue voluntária, predominante no país. Ele considera que o “risco é imenso”, porque a aprovação da PEC acarretaria na redução do plasma disponível e na diminuição da qualidade do material coletado.
“A PEC causa um desestímulo e desestrutura o hábito de doação de sangue. As pessoas poderão vender o plasma em vez de doar, o que pode acarretar um apagão na oferta de sangue”, explicou o secretário.
Os defensores, por sua vez, argumentam que a participação da iniciativa privada, em caráter complementar ao setor público, permitirá a autossuficiência do país, dispensando a importação dos hemoderivados. Entretanto, Carlos Gadelha ainda acrescentou que não há impeditivos da colaboração do setor público com a iniciativa privada. A Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), única responsável pela coleta e processamento de plasma no país, atua em conjunto com empresas do setor privado, como a suíça Octapharma, especializada em hematologia e imunoterapia.
PublicidadeEntre as instituições favoráveis à PEC do Plasma, destaca-se a Associação Brasileira dos Bancos de Sangue (ABBS). O presidente da instituição, Paulo Tadeu de Almeida, declarou apoio à proposta durante audiência pública. Para o médico, a PEC, além de preparar o país para futura autossuficiência na produção de medicamentos à base de plasma, evita o desperdício desse hemocomponente.
“A PEC 10/2022, que tramita no Congresso, é uma oportunidade de reparar esse problema histórico grave: o desperdício de plasma no país. Queremos reverter esse jogo, que contribuirá para salvar a vida de milhares de brasileiros anualmente. O Brasil tem grupos econômicos com expertise e interesse em produzir medicamentos a partir do plasma. Com isso, o país poderá alcançar a autossuficiência desta produção, em vez de depender de medicamentos importados”, explicou o presidente da ABBS.
Além de divergências entre representantes da saúde, os senadores membros da CCJ também apresentaram visões diferentes em relação ao tema. Em pronunciamento no plenário, o senador governista Paulo Paim (PT-RS) se manifestou contrário à PEC. Segundo ele, a comercialização de plasma configura uma “prática indigna e desumana”, uma vez que desvirtua o que ele chama de “princípio da solidariedade”.
“Especialistas têm alertado que essa PEC representa uma séria ameaça a toda a política nacional do sangue, pois cria um precedente perigoso […] ao permitir a comercialização de um hemocomponente vital. Isso nos faria regredir a tempos sombrios, como a década de 70, quando os mais pobres e vulneráveis vendiam sangue, uma prática indigna e desumana.”
O senador Dr. Hiran (PP-RR), em contrapartida, defendeu o relatório de Daniella Ribeiro. Em sessão no mês de agosto, o parlamentar e médico argumentou que a proposta permitirá que o país avance tecnologicamente no processamento de hemoderivados ao possibilitar a entrada do setor privado e “empresas de inovação”.
“O Brasil só fabrica um hemoderivado: a albumina. Temos outros hemoderivados. Nós temos fatores de coagulação, de que não se falou aqui. Nós temos fatores protrombínicos, de que não se falou aqui. E, se a gente não flexibilizar esse marco legal, nós não vamos trazer empresas de inovação para investir nessa política de fabricação desses hemoderivados aqui, o que cerceia o acesso”.
Caso passe pela CCJ, o texto será analisado pelo Plenário, onde será submetido a dois turnos de votação. Para mudar a Constituição são necessários pelo menos 49 votos em cada turno. Passando pelo Senado, a PEC será encaminhada à Câmara, onde terá de passar pela Comissão de Constituição e Justiça e por uma comissão especial antes de ser votada pelo conjunto dos deputados.
Entenda a PEC do Plasma
O plasma é um dos componentes do sangue, representando cerca de 55% do volume do tecido. Atualmente, no Brasil, apenas a Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia (Hemobrás), estatal vinculada ao Ministério da Saúde, realiza o processamento e coleta do plasma humano para o desenvolvimento de tecnologias e produção de medicamentos. No entanto, o país não possui plasma suficiente em bancos para a fabricação de hemoderivados, o que leva à importação dos biofármacos. Segundo o Ministério da Saúde, apenas 30% dos hemoderivados são produzidos nacionalmente, e a importação desses medicamentos supera R$ 1,5 bilhão ao ano. Inclusive, esse é um dos principais argumentos utilizados pelos defensores da proposta.
Na justificativa da PEC, o autor Nelsinho Trad utiliza dados do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público (MP) para justificar a proposta. Segundo os órgãos, entre 2017 e 2020, foram desperdiçados 597.975 litros de plasma no país, volume que corresponde a 2.718.067 doações de sangue, prejuízo que pode chegar a 1,3 bilhão por ano. Além disso, Trad aponta a queda do nível mundial de coleta de plasma durante a pandemia como um dos motivos para a PEC. O senador não propunha a venda do componente.
Foi o texto substitutivo da senadora Daniella Ribeiro acrescentou à PEC a possibilidade de comercialização de plasma. Para a parlamentar, o país ainda não atingiu a autossuficiência para a produção de hemoderivados na quantidade que o Sistema Único de Saúde (SUS) necessita, o que, segundo o relatório, pode ser atingido com maior participação da iniciativa privada nesse setor.
“O fato é que a legislação brasileira está defasada em relação à coleta de plasma. Assim, precisamos urgentemente coletar plasma, estruturar uma rede apropriada para isso, e produzir medicamentos derivados do plasma no País.”, afirmou a senadora.
A PEC recebeu duas emendas do senador Marcelo Castro (MDB-PI). Ministro da Saúde no governo Dilma Rousseff, Castro disse ao Congresso em Foco que se opõe estritamente ao caráter mercantil da proposta na possibilidade de venda do plasma, que reforça, segundo ele, a desigualdade. Por outro lado, o emedebista apoia que o processamento do componente sanguíneo possa acontecer nas duas esferas, no poder público e privado.
“Uma vez que o sangue ou parte do sangue é doado, ele pode ser industrializado e produzido tanto pelo setor público ou privado para o processamento de hemoderivados como imunoglobulina e o fator VIII da coagulação”, declarou Marcelo Castro.
Panorama internacional
Desde 1997, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estabeleceu a política de doação voluntária de sangue, em que os doadores não deveriam ser remunerados pela prática. Apesar disso, em cinco países: Áustria, Alemanha, Hungria, República Checa e Estados Unidos, os doadores são pagos pelas doações de sangue, sobretudo de plasma sanguíneo. Ao mesmo tempo que a comercialização do plasma se torna uma alternativa para a pesquisa na iniciativa privada, ainda assim expõe fragilidades econômicas, sobretudo daqueles que precisam vender o componente sanguíneo por dinheiro.
A jornalista do The Guardian Kathleen McLaughlin expôs a realidade do comércio de sangue nos Estados Unidos em seu livro Blood Money. Em reportagem para o jornal inglês, ela classificou esse sistema como “uma parte oculta da economia dos EUA, afastada dos centros comerciais e relegada para os lados mais pobres das grandes cidades, em locais frequentemente negligenciados e ignorados”.
Segundo a pesquisa de Kathleen, existem mais de mil centros de plasma no país, normalmente localizados em regiões economicamente vulneráveis. Os principais doadores também são universitários, não pelo altruísmo inferido na doação de plasma, mas pela compensação financeira, cerca de US$ 40,00. O montante ao final de um ano é bilionário, pelo menos para as empresas. Em 2021, a indústria global de plasma foi avaliada em US$ 24 bilhões.
Kathleen McLaughlin alertou, na reportagem do The Guardian, para os eventuais prejuízos da doação e venda desenfreada do plasma sanguíneo. “Na verdade, não existe um grande conjunto de pesquisas científicas sobre o que a doação de plasma a longo prazo e em ritmo acelerado pode fazer à saúde de uma pessoa. A prática é vendida como segura, mas muitos doadores se preocupam, especialmente quando ficam cansados com uma doação”.