Todas as propostas de modificações no projeto de lei que altera as regras de demarcação de terras indígenas (PL 490/2007) foram rejeitadas pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que se reuniu nesta terça (29) para analisar destaques à matéria. Agora o texto segue para plenário com amplo apoio da base governistas e das bancadas ruralistas e parlamentares liberais. Mas um julgamento previsto para esta semana no Supremo Tribunal Federal (STF) pode colocar em xeque a validade do PL, mesmo se ele for aprovado pela Casa.
Na pauta do Supremo para esta quarta (30) consta o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng. O que está em jogo é a tese do “marco temporal” Ele garante como terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas brasileiros apenas aquelas que, na promulgação da Constituição de 1988, eram simultaneamente por eles habitadas em caráter permanente; utilizadas para suas atividades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; e necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
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Este mesmo julgamento chegou a ser iniciado em junho de 2020, mas a votação foi interrompida após a apresentação de um destaque do ministro Alexandre de Moraes. A matéria tem como relator o ministro Edson Fachin e, uma vez que haverá análise do mérito da questão, o que for decidido vai fixar tese de referência a todos os casos envolvendo terras indígenas, em todas as instâncias do judiciário, incluindo o PL 490/07.
O Conselho Indigenista Missionário espera que a Suprema Corte possa, assim, dar uma solução definitiva aos conflitos envolvendo terras indígenas no país e garantir um respiro às comunidades que se encontram, atualmente, pressionadas por poderosos setores econômicos.
“Há muitos casos de demarcação de terras e disputas possessórias sobre terras tradicionais que se encontram, atualmente, judicializados. Também há muitas medidas legislativas que visam retirar ou relativizar os direitos constitucionais dos povos indígenas. Ao admitir a repercussão geral, o STF reconhece, também, que há necessidade de uma definição sobre o tema”, diz a organização.
A suprema corte também vai discurtir a manutenção da medida cautelar deferida pelo ministro Edson Fachin, em maio deste ano, que suspendeu os efeitos do Parecer 001/2017 da AGU, instrumento usado para institucionalizar o marco temporal como norma no âmbito dos procedimentos administrativos de demarcação. Este é um dos pontos polêmicos levantados pelo PL490/07.
PublicidadeOs lados do PL
No dia 22 de junho, ao mesmo tempo em que Ricardo Salles pedia demissão do Ministério do Meio Ambiente, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara (CCJ) da Câmara dos Deputados, aprovava o texto-base do PL 490/07 sob intenso protesto de povos indígenas.
Nesta terça, em contrapartida, antes da reunião da CCJ para análise dos destaques capazes de altarar o texto, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) teve uma reunião com a ministra da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, para falar sobre a votação. O projeto é considerado prioritário pelos ruralistas. Após o encontro, o presidente da frente, deputado Sergio Souza (MDB-PR), falou aos jornalistas e disse que o projeto “não trata em nenhum momento de direitos individuais de índios, ele trata exclusivamente sobre regularização fundiária, sobre demarcação de Terras Indígenas”.
O parlamentar afirmou, no entanto, que a FPA defende o direito à propriedade.
O PL 490/07 é caracterizado como “o Projeto de Lei do genocídio indígena” pelo secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário Antônio Eduardo de Oliveira.
O advogado indígena, Maurício Terena, assessor jurídico da Associação dos Povos Indígenas do Brasil, no entanto, deposita a confiança no Supremo e diz que STF poderá ser um grande aliado na manutenção dos direitos dos povos originários. “O Supremo apreciando esse RE diz ‘não’ ao Marco Temporal, consequentemente o PL se torna inconstitucional. Isso afeta o trâmite do PL. Será mais uma ferramenta jurídica para atacar essa legislação”, explica.
O Conselho Indigenista Missionário aponta que pelo menos 27 terras indígenas tiveram seus processos de demarcação devolvidos da Casa Civil e do Ministério da Justiça para a Funai com base no Parecer 001. A medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos.
Também no âmbito do processo de repercussão geral, do qual é relator, Fachin suspendeu todos os processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de demarcações de terras indígenas até o final da pandemia de covid-19.
O PL 490/07 e seus desdobramentos
Ao alterar o Estatuto do Índio o PL 490/07 abre espaço para atividade extrativa dentro das reservas destinadas às populações originárias. Ele é visto como inconstitucional por movimentos indígenas sob alegação de que fere os artigos 231 e 232 da Carta Magna, que reconhece a esses povos os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Outro aspecto alvo de críticas dos oposicionistas é que a proposta que foi aprovada sem consulta prévia às lideranças das comunidades tradicionais e que quebra tratados multilaterais como o estabelecido pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O direito dos povos indígenas e tribais serem consultados, de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar seus bens ou direitos, ou a chamada obrigação estatal de consulta, foi prevista pela primeira vez, em âmbito internacional, em 1989.
Para Maurício Terena, o projeto é uma manobra do governo que visa exclusivamente o mercado. “Ser fosse um projeto sério, aberto para ampla discussão, seria feito em formato de Proposta de Emenda Constitucional”, diz o advogado.
Com a modificação do artigo 19 do Estatuto do Índio, prevista no projeto, fica retirando o poder da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) de avaliar e demarcar as terras de acordo com a proteção cultural das comunidades. Atualmente, conforme o Estatuto, cabe somente ao Presidente da República homologar a demarcação, concordando com os atos já praticados, ou, então, devolver o processo ao órgão de origem. A demarcação é um procedimento administrativo pelo qual uma única unidade administrativa – FUNAI – tem o poder que lhe confere.
No entanto, o texto do Projeto de Lei 490/07, diz que áreas reivindicadas e que são objeto de demarcação, envolvem “interesses diversos, tanto públicos quanto privados”. “Os atos demarcatórios implicam em sobreposições de áreas indígenas às áreas de proteção ambiental, estratégicas para a segurança nacional, como, por exemplo, as localizadas na faixa de fronteiras, de propriedades privadas destinadas à produção agropecuária e outras atividades produtivas importantes para a viabilidade econômica de Estados e Municípios”, menciona o documento.
Para o médico, antropólogo e especialista em saúde indígena István van Deursen Varga, os madeireiros, garimpeiros, milícias e indústrias ligadas a crimes ambientais não esperam a legislação se estabelecer para poder se beneficiar das brechas morais que esse discurso causa.
“Só a presença do presidente da República e a discussão do possível afrouxamento na legislação já abrem caminho para a exploração ilegal das terras indígenas. Já existe uma pressão enorme. Quem age fora da lei, não espera os trâmites acontecerem, o desmatamento, as violências e a exploração já estão acontecendo”, avalia.
István Varga, que é professor da Universidade Federal do Maranhão, participou ativamente da Segunda Conferência Nacional de Saúde para os Povos Indígenas, de 1993. Ele conta que o texto do início do relatório da Conferência estabelecia a garantia do território como condição fundamental para a saúde. “A covid-19 chegou para os povos originários via violação do território. Chegou pelos garimpeiros, como por exemplo nas terras Yanomamis. Com a alta do ouro no mercado, cada vez mais o garimpo clandestino vai se proliferando em terras demarcadas”, afirmou.
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Thaís Rodrigues é repórter do Programa de Diversidade nas Redações realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.
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