Ady Ferrer, Letícia Oliveira e Paola Costa
Especial para o Congresso em Foco
Um banco que não é banco. Oferece uma garantia que não é garantia para um negócio milionário de intermediação de aquisição de vacinas para o Ministério da Saúde por uma empresa que não tem as vacinas que oferece. O banco tem um suposto dono, que nega a propriedade da empresa.
O episódio que envolve o FIB Bank, banco que não é banco que apresentou uma carta de fiança de R$ 80,7 milhões para assegurar o contrato da Precisa Medicamentos com o Ministério da Saúde para a compra de 20 milhões de doses da vacina Covaxin, é um dos grandes novelos que vem sendo desenrolados pela CPI da Covid. Os senadores da comissão suspeitam que o advogado Marcos Tolentino da Silva seja o verdadeiro dono do FIB Bank. Ele nega. Mas esta reportagem exclusiva do Congresso em Foco mostra as diversas digitais de Tolentino no banco que não é banco.
Leia também
Documentos vazados pela célula Etersec do Anonymous mostram que o FIB Bank emitiu cartas de fiança para empresas de Tolentino, de seus sócios e familiares. Se o advogado não é o dono do banco que não é banco, o banco que não é banco tem uma inegável ligação com o advogado.
Relembre a história
A CPI da Covid chega à sua reta final desnudando as raízes das fake news e seus impactos na vida real. No decorrer dos meses, no entanto, foi se descobrindo que, para além do negacionismo do governo de Jair Bolsonaro e dos impactos desse comportamento para o desenvolvimento da pandemia no Brasil, havia também uma engendrada rede disposta a assaltar os cofres públicos. Entre os esquemas descobertos, o caso da compra das vacinas indianas Covaxin foi o que mais chamou a atenção dos senadores.
A Covaxin é fabricada pela Bharat Biotech, empresa indiana com base no Vale do Genoma, região conhecida internacionalmente por abrigar um cluster de empresas da área da biotecnologia. Além de vacinas contra a covid-19, a Bharat fabrica imunizantes contra o rotavírus e vem desenvolvendo vacinas contra chikungunya, zika e malária.
No caso dos imunizantes contra a covid-19, o Ministério da Saúde assinou contrato com a Precisa Medicamentos para importação de 20 milhões de doses do imunizante Covaxin, na manhã de 26 de fevereiro de 2021. Contudo, a vacina ainda não possuía autorização da Anvisa. A resolução nº 476, que autoriza a importação excepcional de vacinas para covid-19 que não possuíam registro sanitário ou autorização de uso emergencial no Brasil, mas eram autorizadas por agências internacionais – entre elas a indiana – foi criada apenas em 10 de março de 2021, sendo publicada na edição de 11 de março no Diário Oficial da União.
Antes mesmo da resolução, portanto, a Precisa já tinha o contrato para vender os imunizantes ao ministério. A Precisa já era uma velha conhecida da pasta de Saúde. Desde 2019, tinha um contrato milionário para fornecer preservativos femininos de látex. Até maio de 2021, a Precisa já tinha recebido mais de R$ 96 milhões via Ministério da Saúde por esse contrato.
A empresa já esteve em foco de outro escândalo durante a pandemia: a Operação Falso Negativo deflagrada em julho de 2020, que acusa ex-gestores da Secretaria de Saúde do Distrito Federal de fraudes em quatro contratos para aquisição de testes de covid-19. As investigações apontaram beneficiamento de empresas pré-selecionadas para o fornecimento, danos milionários ao erário pelo superfaturamento, além de prazos inexequíveis para apresentação das propostas.
Já no caso do contrato das vacinas contra a covid-19, a CPI descobriu falsificações em documentos apresentados pela Precisa, com a inclusão de uma terceira empresa sediada em paraíso fiscal, a Madison Biotech. O contrato também foi financiado por um banco que não é banco e previa 20 milhões de doses, totalizando R$ 1,6 bilhão.
O FIB Bank atua como fundo garantidor de crédito e foi fundado em 20 de novembro de 2015. A instituição afiançou a Precisa em seus dois contratos com o Ministério da Saúde: tanto para a compra de preservativos femininos quanto para as vacinas Covaxin.
Quem é o dono?
A CPI da Covid suspeita que a constituição do FIB Bank foi feita em nome de laranjas e que o verdadeiro dono seja Marcos Tolentino da Silva, advogado amigo do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR). O contrato de preservativos femininos foi firmado quando Barros era ministro da Saúde, no governo de Michel Temer.
Enquanto as investigações da CPI foram se tornando públicas, o site do FIB Bank foi invadido por um grupo de hackers.
O ataque foi de autoria da Etersec, uma célula brasileira do movimento Anonymous, grupo ativista hacker que surgiu em 2003 no imageboard 4chan. Ficaram conhecidos mundialmente em 2008 pelo projeto Chanology, quando hackearam a Igreja da Cientologia em protesto contra práticas abusivas. As ações do movimento têm conotação política e a prática é conhecida como hacktivismo. Já praticaram ações contra agências dos governos dos EUA, Israel, Tunísia e Uganda, entre outros.
Os hackers tornaram disponíveis mais de 400 documentos na internet. A reportagem analisou esses documentos. E eles mostram aquilo que Tolentino nega: uma grande ligação do advogado, seus familiares e amigos com o FIB Bank.
O FIB Bank
A instituição foi fundada por duas empresas: MB Guassu e Pico do Juazeiro. Os sócios da MB Guassu, Francisco e Sebastião Lima, morreram em 2020. Segundo o vice-presidente da CPI da Covid, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), houve movimentação financeira junto ao FIB Bank após a morte de ambos, fato constatado por quebra de sigilo bancário. O outro sócio da Pico do Juazeiro é Ricardo Benetti e sua empresa B2T Prestação de Serviços Ltda.
O capital social do FIB Bank chega a R$ 7,5 bilhões divididos em dois terrenos. Um deles, no valor de R$ 300 milhões, fica em Curitiba, no Paraná, e está no nome da Pico do Juazeiro. O outro, de R$ 7,2 bilhões, ficaria em São Paulo e está no nome da MB Guassu. No entanto, não há registro do terreno. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) afirmou que o terreno aparecia registrado anteriormente em Curitiba, em cartório que não existe, antes de ser mudado para São Paulo.
Durante seu depoimento à CPI, o presidente do FIB Bank, Roberto Pereira Júnior, negou que Tolentino seja sócio oculto da instituição, mas admitiu a existência de uma procuração para atuar em nome da instituição. Mas as coincidências não param por aí.
Família Tolentino & Benetti
Marcos Tolentino da Silva é dono oficialmente de 11 empresas, sendo presidente, representante e diretor de mais outras dezenas, a maioria delas parte do grupo Benetti. O próprio Marcos Tolentino tem uma carta de fiança emitida pelo FIB Bank em seu nome, em um processo trabalhista. As digitais de suas empresas, de familiares e de amigos aparecem com frequência.
O grupo Benetti é um guarda-chuva que abarca desde redes de televisão à massa falida da empresa de chocolates Pan. Em seu depoimento à CPI, em 14 de setembro de 2021, Tolentino afirmou que ele e Ederson Benetti foram sócios desde 1999. Após a morte de Ederson, algumas de suas empresas foram passadas para o nome de Marcos Tolentino. Outras foram para o nome de Ricardo Benetti.
É conhecimento da CPI, no entanto, que Marcos Tolentino tem procuração com plenos poderes para atuar em nome das empresas do filho de Ederson Benetti.
Não é apenas Tolentino que tem empresas com Benetti. Roberto Alvarenga, seu sogro, é sócio de quatro empresas: Benetti Prestadora de Serviços e Incorporadora, Benetti Administradora de Bens Próprios, BAA – Benetti Consultoria e Participações LTDA e BAA – Administradora de Bens e Consultoria Tributária. Duas empresas de Vanessa Navarro Alvarenga Tolentino, esposa de Marcos, têm em seus quadros societários empresas de Ricardo Benetti.
E quem afiança muitas vezes as empresas do grupo Benetti? O FIB Bank. O grupo Benetti é afiançado em 18 cartas que aparecem no arquivo extraído pelos hackers, a maioria delas para órgãos públicos.
A Benetti Invest Participação e Intermediação LTDA utilizou o FIB Bank para afiançar dois processos de dívidas de Imposto Sobre Serviço com a Prefeitura Municipal de São Paulo, em 2017. A carta assegura R$ 742 mil. Veja reprodução da carta:
A Benetti Prestadora de Serviços e Incorporadora Ltda. também usou a instituição financeira para quitar dívidas em São Paulo, capital, e nas cidades paulistas de São Caetano do Sul e União Federal. Essa última, somando mais de R$ 23 milhões, foi emitida em 21 de junho deste ano. A Fazenda Nacional chegou a informar ao Sistema de Justiça do Distrito Federal (SJDF) que a carta fiança não atendia aos requisitos exigidos, não podendo ser aceita como instrumento de garantia dos débitos. Contudo, acabou sendo aceita. Veja o documento:
A BAA – Benetti Consultoria e Participações pagou suas dívidas com a Distribuidora de Medicamentos Santa Cruz Ltda. Em 3 de junho de 2021, a carta fiança apresentada foi desconsiderada “porque não foi emitida por instituição financeira reconhecida pelo Banco Central do Brasil, nem seguro-garantia, porque a empresa FIB-BANK não detém licença de operação junto à Superintendência de Seguros Privados”.
Já a B2T Prestação de Serviços pagou débitos de quatro créditos de dívida ativa com o Ministério da Fazenda usando o FIB Bank, no ano de 2017. O processo teve baixa definitiva em 22 de junho de 2021.
Diretor, endereço e telefone em comum
A ligação das empresas Benetti com o FIB Bank é ainda maior: o diretor comercial da Benetti Consultoria Empresarial, Wagner Potenza, já foi diretor do FIB Bank entre 2016 e 2018. Potenza assinou diversas cartas fianças beneficiando o grupo Benetti nesse período.
O telefone do FIB Bank é o mesmo do escritório de Ricardo Benetti. A MB Guassu está localizada no mesmo prédio e andar que a Tolentino Sociedade de Advogados e Benetti & Associados.
A Chocolates Pan, adquirida por Marcos Tolentino em 2016, também aparece nas cartas. São 14, sendo 12 delas relativas ao pagamento de dívidas públicas. Para o estado de São Paulo foram duas cartas, chegando a mais de R$ 10 milhões. Para as prefeituras, são sete cartas para cidades do interior de São Paulo, nos anos de 2017, 2018 e 2020.
Ligações com a mãe e a sogra
A sogra de Tolentino, Gloria Aparecida Navarro Alvarenga, é sócia-administradora da Paz Administradora de Ativos Ltda, empresa que foi investigada pela Operação Ararath.
Segundo as investigações, a Paz e a Benetti Prestadora de Serviços receberam R$ 3 milhões de empresas que faziam parte de um esquema com “banco clandestino”. De acordo com a acusação, esse “banco clandestino” fazia operações financeiras de forma ilegal e também recebia dinheiro de desvio de recursos publicos. Tolentino fechou acordo de delação em 2018. Segundo uma reportagem do jornal Folha de S. Paulo, a Paz também adquiriu um helicóptero da empresa Bel Hel, do deputado Celso Russomanno (Republicanos-SP).
O FIB Bank foi usado como carta de fiança para dois processos de atraso de pagamento de honorários advocatícios.
A mãe de Marcos Tolentino, Valdete Vieira Tolentino, é sócia de outra empresa investigada na CPI da Covid: Brasil Space Air Log.
Durante o depoimento de Roberto Pereira Júnior, o senador Humberto Costa (PT-PE) afirmou que foram feitas 19 transferências bancárias do FIB Bank para a empresa de Valdete, entre junho de 2020 e maio de 2021. O valor chega a quase R$ 2 milhões. A CPI também apurou que a Brasil Space Air, a Rede Brasil de Televisão (empresa de Marcos Tolentino), Pico do Juazeiro e o grupo Benetti têm contas na mesma agência em São Paulo.
A empresa usou o FIB Bank para afiançar um débito oriundo de crédito de IPVA de mais de R$ 63 mil para o estado de São Paulo, em 2019, como mostra o documento abaixo:
Em sua maioria, as cartas de fianças expedidas pelo FIB Bank para as empresas de Marcos Tolentino são para o poder público, em processos sobre dívidas de impostos.
O Congresso em Foco procurou Toletino e os demais citados nesta reportagem, mas, até o momento, não obteve resposta. O espaço segue aberto para os devidos esclarecimentos que queiram prestar.