por Dayana Rosa* e Paula Napolião**
Na disputa de força entre os Poderes Legislativo e Judiciário, duas Propostas de Emenda à Constituição (PEC nº 45/2023 e PEC nº 34/2023) tramitam na Câmara dos Deputados na tentativa de incluir a criminalização das drogas como uma cláusula pétrea da Constituição Federal – um feito mundialmente inédito que legitimaria o pioneirismo brasileiro em negar evidências científicas. As pessoas que usam drogas são o bode expiatório da briga entre o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF): de um lado, parlamentares protagonistas da cruzada proibicionista; do outro, ministros que caminham na direção de descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal.
Apesar de diferentes pontos de vista, ambos os lados se utilizam dos mesmos argumentos para defender suas ideias. Analisando o discurso público tanto do Congresso quanto do STF, identificamos os quatro principais argumentos que movimentam a discussão:
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1. “Em defesa da saúde”
A descriminalização das drogas vem sendo constantemente aconselhada por organismos internacionais, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirmam que a proibição pode contribuir para o uso indevido e o aumento do risco de overdose de diversas formas (leia documento com as diretrizes da OMS aqui). Se há proibição, não há informação, tampouco prevenção.
Além disso, um estudo do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) mostrou que conviver com operações policiais frequentes justificadas pela guerra às drogas impacta significativamente a saúde física e mental de moradores de favela. A pesquisa (leia em formato .pdf) revelou que as proporções de adultos com hipertensão arterial, insônia prolongada, ansiedade e depressão são maiores nos territórios onde esses tiroteios ocorrem com frequência quando comparados a outras áreas. Moradores de comunidades com mais tiroteios ainda têm um risco 42% maior de desenvolver hipertensão arterial e o dobro da chance de sofrer com sintomas típicos de ansiedade e depressão. Além, é claro, da interrupção dos atendimentos em saúde e adoecimento psíquico dos profissionais que atuam nesses territórios.
2. “Para reduzir a criminalidade”
O Brasil ostenta a lamentável marca de 850 mil pessoas presas, ocupando o terceiro lugar no ranking da população carcerária mundial. Dentre os presos, a maior parte deles, 23%, está lá por tráfico de entorpecentes, segundo dados do Sistema Nacional de Informações Penais (Sisdepen). Não há efeito positivo do encarceramento em massa na redução da criminalidade – caso contrário, o Brasil seria um dos países mais seguros do mundo – ou ainda na dissolução de grandes organizações criminosas. Pelo contrário, devido aos altos níveis de corrupção, as redes do crime seguem operando mesmo dentro do sistema prisional. O resultado é a punição de pequenos varejistas de drogas sem que isso tenha efeito considerável sobre a demanda e oferta de substâncias.
Publicidade3. “Os custos são altos”
Conhecer, ainda que parcialmente, quanto custa a manutenção da atual política de drogas é ampliar a discussão sobre alocação de recursos públicos. Questionar como é direcionado esse orçamento é um direito de todo cidadão. Outra pesquisa do Cesec (leia aqui) calculou que foram gastos R$ 5,2 bilhões para processar, julgar e encarcerar pessoas com base na atual Lei de Drogas nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Ou seja, apenas dois estados da federação empregaram mais de cinco bilhões de reais numa política que produz morte e sofrimento, acentua a desigualdade e não reduz o consumo ou a circulação de drogas ilícitas. Para se ter ideia, com esse valor, seria possível construir 121 escolas ou manter o funcionamento de 81 Unidades de Pronto Atendimento (UPA).
4. “Precisamos proteger as pessoas mais vulneráveis”
Evidências mostram que a aplicação da legislação sobre drogas não só não protege, mas vulnerabiliza minorias raciais e étnicas (leia artigo em inglês aqui). Entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros, 86% são do sexo masculino, 72% têm até 30 anos e 67% não concluíram o ensino básico, mostra nota do Ipea. Quando analisamos a população carcerária feminina, a maioria das mulheres está nas prisões por crimes relacionados às drogas. O perfil majoritário é de mulheres negras (63,55%) e jovens (47,33% têm entre 18 a 29 anos), pelo Infopen 2017. Essas prisões afetam famílias inteiras e aprofundam desigualdades. Além de encarcerar, a repressão às drogas gera efeitos devastadores na educação de moradores de favelas e periferias. Crianças que frequentam escolas expostas a tiroteios provocados por operações policiais justificadas pelo combate às drogas registraram perdas de 64% no aprendizado em português e 100% em matemática no 5º ano do ensino fundamental, segundo o Cesec.
Não faltam dados que comprovem o quão desastrosa é a escolha política de apostar em estratégias puramente bélicas para lidar com as drogas. Ainda que se trate de uma pauta moral, que se conecta com os valores e os costumes de um país, evidências como as que trouxemos aqui (e que não se esgotaram) podem informar a decisão de parlamentares e ministros comprometidos em melhorar a vida da população.
É implacavelmente real a necessidade de se avançar em consensos e buscar denominadores em comum. Da mesma forma, é inegável que na disputa entre Congresso e STF quem perde são as pessoas mais vulnerabilizadas. Negar essa realidade produz impactos perversos não apenas na vida das pessoas que usam drogas, mas de todo o país, pois as políticas públicas são para todos.
* Dayana Rosa é especialista de relações institucionais e saúde mental do IEPS (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da UERJ e bacharel em Administração Pública pela UFF.
** Paula Napolião é coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), doutoranda em Antropologia pelo Programa de Sociologia e Antropologia da UFRJ e bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional pela UFRJ.
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