Anualmente, lideranças do Congresso Nacional se reúnem na Comissão Mista do Orçamento para apreciar primeiro a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e, em seguida, o projeto de orçamento enviado pelo governo para o ano seguinte. Apesar de a competência para elaboração dessa proposta ser do poder Executivo, uma pequena parcela dos recursos é sempre reservada para atender a propostas de deputados e senadores: as chamadas emendas parlamentares ao orçamento. A partir de 2019, uma série de reformas no funcionamento dessas emendas originou o que hoje é conhecido como orçamento secreto.
O orçamento secreto se tornou um ponto de preocupação tanto do governo quanto da oposição. Os oposicionistas veem nele um mecanismo de cooptação do Congresso, facilitação de desvio de verbas e de compra de votos de parlamentares. Já o governo nega haver qualquer problema. Quando questionado sobre o assunto, o presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputa a reeleição, insiste na narrativa de que não tem nada a ver com o assunto e que o instrumento foi criado pelo próprio Legislativo. Essa versão foi prontamente rebatida pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia enquanto Bolsonaro tentava transferir ao deputado a responsabilidade pelo artifício durante o debate na Band.
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Os temores da oposição e o receio do governo ao tratar do assunto não se dão por acaso. Os empenhos do orçamento secreto, que entre 2020 e 2022 já ultrapassam R$ 44 bilhões, são indicações de verbas feitas por deputados e senadores sem a necessidade de identificação, possibilitando a indicação de contratos superfaturados de parceiros de cada parlamentar. A ausência de uma assinatura do responsável pela indicação desses recursos é o que o torna secreto.
Em entrevista ao Flow Podcast, a ex-candidata presidencial e senadora Simone Tebet (MDB-MS) chegou a declarar que o orçamento secreto, por conta de seu elevado volume e da facilidade para a realização de fraudes, pode ser “o maior esquema de corrupção do planeta Terra”, apontando um exemplo de fraude no interior do Maranhão, onde pequenos municípios receberam dinheiro para atender demandas inexistentes, como exames médicos em quantidade superior à própria população.
O caso citado pela senadora inclusive é motivo de preocupação pela Controladoria-Geral da União (CGU). O órgão mantém um monitoramento de larga escala sobre mais de 500 municípios, sob suspeita de desvio de verbas da saúde por meio do orçamento secreto. Wagner Rosário, ministro da CGU, chegou a divulgar um vídeo nas redes sociais ensinando usuários a identificar essas emendas no Portal da Transparência, visando promover a fiscalização por parte dos cidadãos.
No debate eleitoral, tanto Simone Tebet quanto Lula se sentiram lesados em concorrer contra um governo que a cada ano aumenta a oferta de recursos para o orçamento secreto. Além de cristalizar sua posição diante do Congresso Nacional, Bolsonaro se beneficia eleitoralmente desse mecanismo, que direciona verba às bases dos deputados com quem divide o palanque.
PublicidadeBolsonaro tenta negar sua participação na criação desse tipo de mecanismo ao mesmo tempo que mantém alianças próximas com aqueles que mais o utilizam: seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, enviou R$ 460 milhões ao Acre em 2021 por meio do orçamento secreto. Já Arthur Lira (PP-AL), principal parceiro de Bolsonaro na Câmara e presidente da Casa, conseguiu indicar o destino de mais de R$ 300 milhões por meio do orçamento secreto entre 2020 e 2021.
Tipos de emendas
Emendas parlamentares não são uma exclusividade da política brasileira. Trata-se de um mecanismo orçamentário comum em democracias. Com elas, deputados e senadores conseguem encaminhar recursos para o cumprimento de propostas em suas bases, muitas vezes em regiões afastadas do radar do governo federal. Além disso, funcionam como meio de negociação para parlamentares da minoria, que conseguem utilizar sua parcela das emendas como moeda de troca por apoio em seus projetos de lei.
Essas emendas originalmente eram divididas em quatro categorias: as individuais, cuja destinação fica a critério de cada parlamentar; as de bancada, definidas em conjunto pelas bancadas estaduais e regionais; as de comissão, definidas pelas comissões temáticas da Câmara e do Senado; e as de relator (RP9), de origem mais recente, definidas conforme critérios do relator geral do orçamento, selecionado anualmente.
Esse tipo de emenda foi criado com a premissa de permitir ao relator corrigir falhas técnicas na elaboração do orçamento anual. Em dezembro de 2019, o Congresso Nacional tentou tornar obrigatória a aplicação desses empenhos, proposta recusada pelo presidente Jair Bolsonaro, que voltou atrás quando recebeu um texto semelhante do ministro da Secretaria-Geral do Governo, Luiz Eduardo Ramos.
A justificativa de Ramos, na mensagem oficial enviada ao presidente, seria de melhor direcionar recursos para saneamento básico em municípios com menos de 50mil habitantes, aprimorar os procedimentos de execução orçamentária das autarquias ligadas a programas de desenvolvimento e otimizar o controle e execução nos repasses de projetos públicos dos entes federativos.
Confira a seguir o projeto original de Ramos e Bolsonaro:
Orçamento secreto
Em 2020, as emendas de relator passaram a funcionar com as novas regras propostas por Ramos, que foram alvo de críticas. Um desses críticos é o deputado Aliel Machado (PV-PR), que ressalta que o problema não está na imposição em si. “Em momentos em que o governo se mantém inerte e não apresenta projetos, a participação direta do parlamento na execução do orçamento acaba se tornando necessária”, disse o deputado ao Congresso em Foco.
Essa possibilidade de preenchimento de eventuais vácuos do Executivo, porém, vem acompanhada de uma armadilha: o risco de parlamentares solicitarem emendas de forma anônima. “Isso se tornou uma brecha para as solicitações ficarem às escondidas. Quem quer ajudar seu município não tem o que esconder, mas quem quer fazer algo errado, encontra ali um caminho para se ocultar”, alertou.
Em maio de 2021, foi revelado o primeiro escândalo de corrupção utilizando as emendas de relator, em uma investigação do Estadão que deu origem ao termo “orçamento secreto”. A possibilidade de solicitar emendas utilizando critérios próprios e sem revelar o próprio nome permitiu com que diversos parlamentares realizassem compras superfaturadas ou realizassem obras que trouxessem apenas benefícios pessoais, às vezes fora de seus estados. Na investigação, foi destacado o “tratoraço”: uma compra de trator por mais de 200% de seu valor, utilizando recursos do poder executivo.
O próprio Aliel Machado é um dos deputados que investigam o escândalo das Escolas Fake: a destinação de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento em Educação, atualmente mantido em grande parte por verba do orçamento secreto, a municípios em valores insuficientes para a realização das obras registradas. Diversas prefeituras chegaram a receber valores inferiores a R$ 10 mil sob a premissa de construção de escolas e creches.
Na última sexta-feira (14), chegaram a acontecer as primeiras prisões em decorrência do orçamento secreto. No Maranhão, o município de Igarapé Grande obteve recursos vindos de emendas de relator para o pagamento de radiografias de dedo em uma quantidade superior à sua própria população, indicando a possibilidade de se tratar de uma tentativa de desvio de verba. Dois servidores públicos foram presos, e a Polícia Federal investiga o caso.
O orçamento secreto também é constantemente apontado como uma ferramenta do atual governo para comprar votos de parlamentares. Com a porcentagem do orçamento da União destinada às emendas de relator aumentando a cada ano e o encolhimento das verbas ministeriais, a possibilidade de enviar esses recursos para obras em suas bases acaba se tornando um convite para deputados cooperarem com o relator geral do orçamento.
A escolha desse relator se dá por meio do presidente da Comissão Mista do Orçamento. Este, por sua vez, é eleito pelo bloco majoritário da comissão, que atualmente é o do governo. Com isso, bons termos e adesão a projetos do governo acabam se tornando um fator de peso para que um deputado ou senador consiga acessar os recursos do orçamento secreto. Preservando o aumento anual da verba para emendas de relator, o governo acaba conseguindo preservar o apoio da maioria.