Ricardo de João Braga*
O ser humano procura padrões e tendências em tudo que vê: queda de raios, terremotos, migrações animais, chuvas etc. Procuramos encontrar frequências, probabilidades, e apresentar explicações e previsões. Esta tendência da nossa mente expande-se também para os fatos da vida social: votações, processos legislativos ou judiciários, manifestações, tudo estaria submetido a padrões e tendências. Até aí não há maiores objeções a opor, pois se não encontramos padrões alguém poderia dizer que “ainda” não encontramos, bastaria procurar um pouco mais (mais dados, mais teorias, mais testes). Além disso, nem sempre haverá regras gerais, elegantes e universais. Explicações razoáveis são muitas vezes complexas e pouco inteligíveis.
O problema a discutir, contudo, é quando esta procura de tendências toma o atalho mais fácil e credita todo e qualquer processo social ao controle onisciente, onipresente e onipotente de um pequeno grupo interessado. Esta explicação, que pode ser sintetizada na famosa fórmula da “teoria da conspiração”, é, como alguém já disse, um grande atalho preguiçoso para o entendimento do mundo social.
Encontram-se usualmente, na imprensa ou bate-papos, narrativas e explicações da crise sob determinados pontos de vista. O fluxo dos fatos é convenientemente acomodado a um pretenso feixe de interesses de algum ator privilegiado. Vê-se no processo no Conselho de Ética, no impeachment e na operação Lava a Jato o desenrolar de fatos segundo o CONTROLE de tal ou qual ator poderoso, sejam Dilma, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Michel Temer, Lula, Aécio, Serra ou sabe-se lá quem. Esta explicação, contudo, deve ser criticada para melhor entendimento do processo em curso.
Leia também
É inegável que o Brasil, sociedade secularmente desigual, alimenta a ideia de um pequeno grupo no comando em detrimento do restante do país. A literatura em Ciências Sociais nos mostra a existência de um grupo encastelado no Estado que suga a riqueza da sociedade privada (Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, por exemplo), ou então enfatiza a ancestral violência e exclusão imposta por nossa estratificação social (Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre). O que se deve questionar, contudo, é se atualmente o Brasil ainda pode ser considerado uma sociedade “consociativa” em sua elite. Será que não há competição entre os grupos dominantes? Será que a participação das massas na política não é hoje uma ação que reconfigura a margem de manobra destes mesmos grupos dominantes (o que é uma forma de valorizar a democracia)?
O quadro brasileiro atual expressa um policentrismo, na linha do que prescreve Robert Dahl, um dos teóricos modernos da democracia na vertente pluralista. Políticos do Legislativo e do Executivo, Ministério Público Federal, aspirantes a presidente na campanha de 2018, ministros do STF, a Justiça Federal em Curitiba e agentes econômicos e sociais se mesclam no tabuleiro. Esta miríada de atores caracteriza as sociedades plurais, cada vez mais complexas, do mundo contemporâneo. A própria fraqueza (conjuntural ou estrutural?) da presidente da República é corolário da pulverização da autoridade, da influência e do poder.
PublicidadeA par o fato de que hoje parece menos provável a existência de um consórcio bem articulado de “expropriadores” da pátria no Brasil – já que haveria uma competição razoável inter e intra-elites, arbitrada de alguma maneira pela participação popular –, deve-se avaliar a natureza e a lógica dos processos decisórios em curso e as dificuldades inerentes a ele. Há dois pontos centrais: o monitoramento das ações pela população interessada e a complexidade dos processos em si.
O primeiro ponto, contestável mas importantíssimo, refere-se ao quanto acreditamos que hoje é relevante a opinião pública no Brasil. Não tem nos parecido que autoridade policial, judiciária ou política esteja muito confortável em “sentar em cima” de processos, pois há uma vigilância razoável dos meios de comunicação e da sociedade interessada. O custo de acomodar ilegalidades e imoralidades num jogo consociativo subiu, sendo para muitos impeditivo.
Alguém poderia reputar ingênua esta afirmação (ou tudo que se escreveu até aqui!), mas compare a sociedade brasileira de 2015 com aquela de 1995, por exemplo, ou a de 1975 (apenas para manter intervalos de 20 anos). Seria razoável supor que há uma maior vigilância da sociedade e dos meios de comunicação? Valores como igualdade perante a lei não estariam hoje mais efetivos e instrumentalizados por atores com interesse em influenciar o processo político? Não estamos nos referindo a pureza de coração, boas intenções e altruísmo (objeto para outro artigo), mas sim ao uso instrumental, por agentes ativos no jogo político, de valores hoje mais caros para a sociedade e impactantes nos processo político. Em outras palavras, acusar alguém de não cumprir seu dever legal ou proteger poderosos parece hoje mais chocante ao cidadão comum do que foi há 20 ou 40 anos, o que pode influenciar o desempenho do político nas urnas e mesmo a sobrevivência burocrática de agentes do estado.
O segundo ponto, este menos disputado mas também menos conhecido, diz respeito à própria incapacidade dos atores em disputa conhecerem todas as informações sobre o que está em jogo e a dificuldade de avaliar todos os dados recebidos. Se imaginarmos os processos de impeachment, o de quebra de decoro e a operação Lava a Jato como objetos de interesse de uma série pessoas, é adequado imaginar que alguém conheça todos os interesses e as estratégias possíveis de todos os outros? Não é razoável supor isso, sem dúvida. Há interesses sendo avaliados e re-avaliados, possibilidades estratégicas que se abrem e se fecham, novos fatos descobertos em investigações, novas possibilidades jurídicas criadas e escolhidas a cada momento. Você ainda acredita que alguém pode conhecer tudo isto e se posicionar adequadamente em relação a este universo de eventos? Há alguém, ou um grupo, onisciente, onipresente e onipotente?
É curioso como a teoria da conspiração nega dois fatos comezinhos da vida: que as pessoas erram e que costumam ter interesses distintos e antagônicos. Nós erramos ao tentar seguir uma receita culinária e temos dificuldade em combinar com amigos e familiares o dia e hora da confraternização de final de ano. Contudo, acreditamos que um grupo de pessoas, com interesses intensos, em cenários muito complexos, consegue planejar ações e segui-las sem desvio. A teoria da conspiração, que se mostra tão sofisticada, é na verdade apenas uma capa de arrogância que reveste a incapacidade de compreender a complexidade de uma série de fenômenos.
Assim, a resposta à pergunta “quem está no comando da crise política” não é personalizada. Parece-me que não há ninguém no comando. O que há, como ensinou Maquiavel há 500 anos, é que existem políticos (em todos os poderes) que são mais astutos e corajosos, mais hábeis e afortunados, que sabem compreender melhor os sinais, se posicionar mais rápido, e comunicar de forma mais eficaz suas versões ao eleitorado. No fundo, contudo, todos eles são apostadores: vivem intensamente um jogo e foram selecionados por tomarem mais decisões acertadas que a maioria de nós (acertadas no sentido de sua própria preservação no jogo político).
Quem está no comando da crise política? Provavelmente ninguém. Mas ao final haverá vencedores e perdedores. Só não vale contar a história de trás pra frente!
*Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj), Ricardo de João Braga é professor, consultor político e também possui formação em Economia.