Paula Vergueiro* e Victor Drummond**
A Constituição de 1988 garante aos autores de obras artísticas os direitos autorais que permitem a utilização, publicação ou reprodução de suas criações, bem como o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das respectivas obras que criarem ou interpretarem (Art.5º, XXVII e XXVIII). São prerrogativas inderrogáveis, isto é, não podem ser objeto de Emenda Constitucional e sua modificação só seria possível no âmbito de uma Assembleia Constituinte. Tais direitos cabem, exclusivamente, aos autores, de forma mais ampla, os criadores.
Também não se pode esquecer do mandamento do Artigo XXVII (2) da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que preceitua que “todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor”.
Ocorre que, no universo dos direitos autorais, não obstante a proteção constitucional e humanística, os criadores do audiovisual são privados do recebimento de uma justa remuneração pela exploração econômica das suas obras e interpretações no ambiente digital. Os direitos de remuneração garantem a possibilidade de compensações pelo uso de obras, interpretações ou execuções que sejam exploradas comercialmente, sobretudo as utilizações que não existiam anteriormente e geram vultosas receitas atualmente para as plataformas de serviços online.
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O criador, portanto, pode autorizar o uso das suas obras, interpretações e execuções, mas é fundamental que a lei garanta uma compensação por tais usos, sobretudo aqueles que vão surgindo ao longo do tempo e não são remunerados. O quadro atual no ambiente digital é esse: as novas formas de utilização das obras e interpretações tomaram conta do mercado, mas os contratos não as refletem corretamente e, portanto, os criadores não recebem por essas atividades. Dito de outra forma, as plataformas digitais possibilitaram e ampliaram o alcance mundial e a difusão de obras, mas aqueles que as criam, interpretam ou executam, ou seja, os que estão na sua essência artística, não recebem por isso.
Inúmeros países vêm reconhecendo um direito de remuneração pelo uso das obras musicais e audiovisuais: Espanha, Argentina, Itália, Portugal, Colômbia, México, Chile, Suíça, Peru, Bélgica, etc. Vive-se um movimento mundial, que inclui exigências por modificações das leis e greves por melhores condições, como em Hollywood.
PublicidadeO PL 2370/19 pretende consertar a injustiça histórica existente no Brasil, ao instituir o direito de remuneração a ser pago pelas plataformas digitais aos criadores de obras musicais e audiovisuais pela utilização de suas obras, interpretações e execuções, recolocando o Brasil no mapa de países que respeitam seus criadores. Com o projeto, desde que atendidas as propostas demandadas dos artistas, o que hoje não está nos relatórios publicados, se garantirá o reconhecimento do direito dos criadores e se modernizará a legislação brasileira que, hoje, encontra-se ultrapassada e gera verdadeiros constrangimentos internacionais ao país.
Vale lembrar que os contratos assinados entre os criadores e as plataformas digitais, que são contratos celebrados para a etapa de desenvolvimento das obras audiovisuais, não são fruto de uma livre negociação entre as partes. Ao contrário, são celebrados com base em modelos e padrões estabelecidos pelas plataformas, repletos das chamadas cláusulas padrão, na sua essência, inegociáveis e imutáveis. E, muitas vezes, os contratos são meras reproduções de contratos de legislações estrangeiras, que nem deveriam ser utilizados no Brasil.
Na prática, os criadores acabam abrindo mão de suas obras em favor das plataformas, porque de outra forma não poderiam trabalhar, renunciando a qualquer receita futura relacionada ao destino econômico da obra, e sem poder negociar as cláusulas dos contratos, o que é frontalmente injusto e é violador de toda a lógica dos direitos autorais, visto que para cada modalidade de utilização da obra há direitos, autorizações e pagamentos diferentes. Além disso, há violação da autonomia da vontade e são praticados contratos de adesão.
Como se não bastasse, as plataformas ainda impõem que os criadores e artistas cedam seus direitos para usos que ainda não existem, mas poderão, potencialmente, surgir. Chega-se a incluir nos contratos a expressão “para meios tecnológicos que vierem a ser inventados”. Não é minimamente razoável que se possa imaginar que os criadores devam ceder previamente seus direitos sobre algo que ainda não existe. Agrava-se a situação quando o “algo que não existe” se transforma numa das principais formas de utilização de obras: os usos digitais, sobretudo o que se passou a nomear como streaming!
A aprovação do PL 2370/19, com redação que garanta aos criadores e artistas brasileiros da música e do audiovisual o pleno exercício de seus direitos constitucionais, assegurando o direito de remuneração pela comunicação ao público de suas criações e a possibilidade do exercício dos direitos pela forma da gestão coletiva no ambiente digital, é a oportunidade inadiável que o Congresso Nacional tem de reparar esta injustiça histórica. O direito de remuneração no ambiente digital dará concretude ao mandamento constitucional. Isso sem contar com a projeção de nossa imagem e cultura no exterior, o que traz impactos positivos em investimentos e outras atividades econômicas para o país.
É fundamental aprovar o PL 2370/19, insistimos, desde que o seu texto contemple o direito de remuneração dos criadores do setor musical e audiovisual do Brasil e a proteção contra cláusulas impostas e que não podem ser negociadas pelos criadores, que são o elo mais fraco nessa relação comercial.
Cada dia que passa, o não reconhecimento pleno do direito de remuneração coloca o Brasil em situação mais difícil perante países que respeitam seus criadores.
Desrespeitar os criadores é desrespeitar o próprio país, e um país que não respeita seus artistas não respeita a sua própria cultura.
* Paula Vergueiro é advogada da Gestão de Direitos Autorais GEDAR e mestre em Direito
** Victor Drummond é pós-doutor em Direito pela Universidade de Lisboa, doutor em Direito pela Estácio de Sá, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, presidente-executivo da Interartis Brasil, advogado e professor universitário.
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