No último dia 31, o Congresso em Foco revelou que havia sumido dos arquivos sonoros da Câmara trecho do discurso feito pelo então deputado Jair Bolsonaro (RJ), em 1998, no qual ele elogiava o genocídio indígena nos Estados Unidos. A Câmara alegou, na ocasião, que esse áudio, assim como outros, haviam sido danificados no processo de digitalização dos pronunciamentos dos deputados. Menos de três semanas depois, no entanto, o registro está de volta ao portal da Casa.
Até então, como mostrou este site, só era possível saber da existência da fala de Bolsonaro pela sua transcrição nas notas taquigráficas e no Diário Oficial da Câmara. Agora é possível ouvir o ex-presidente da República chamar de “incompetente” a “cavalaria brasileira” por não ter dizimado os indígenas do país. O discurso ganha maior força no momento em que os yanomami enfrentam grave crise humanitária em decorrência da ação de garimpeiros e da omissão do governo Bolsonaro. Ouça o pronunciamento na íntegra (o trecho citado começa em 1 min 52 s):
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Em resposta à reportagem, a Câmara atribui tanto o desaparecimento como o reaparecimento do arquivo sonoro a questões tecnológicas, e não a uma possível intervenção humana para tentar preservar Bolsonaro (veja mais abaixo a íntegra da resposta). A recuperação do áudio foi revelada pelo canal Meteoro Brasil, do Youtube.
Quatro parágrafos e meio haviam sido suprimidos do áudio do pronunciamento feito por Bolsonaro na sessão extraordinária de 15 de abril de 1998. Neles, estavam os trechos mais duros do discurso (leia mais abaixo). O então deputado fluminense subiu à tribuna da Câmara para repercutir a declaração de um general das Forças Armadas dos Estados Unidos que defendia a intervenção norte-americana na Amazônia.
“Até vale uma observação neste momento: realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema”, discursou o então deputado do chamado baixo clero, grupo de parlamentares sem expressão política e apegado a questões corporativas e paroquiais.
Também havia sumido o trecho, do mesmo pronunciamento, em que Bolsonaro criticava a rejeição da urgência para a votação do seu projeto de decreto legislativo que anulava a reserva yanomami. Por 290 votos a 125, os deputados rejeitaram em 30 de agosto de 1995 acelerar a análise do projeto, que acabou arquivado posteriormente. Bolsonaro ainda tentaria outras três vezes, como mostrou o Congresso em Foco, tornar sem efeito a demarcação das terras dos Yanomami.
Ficou de fora, ainda, o trecho em que Bolsonaro diz que dava razão aos militares norte-americanos de quererem intervir na Amazônia. Segundo ele, os indígenas brasileiros não sabiam o que fazer com a terra que têm sob seu controle.
“Particularmente, colocando-se no lugar deles, eles estão muito certos. Afinal de contas, Bismark disse há algum tempo: ‘As riquezas naturais nas mãos de quem não sabe ou não as quer esperar constitui permanente perigo para quem as possui.’ E aqui no Brasil a nossa Amazônia está relegada a terceiro plano também, como os professores”, defendeu.
O que diz a Câmara
O Congresso em Foco questionou a Câmara sobre o motivo de trechos daquele discurso de Bolsonaro terem sumido dos registros. Na resposta enviada no final de janeiro, a assessoria de comunicação da Casa atribuiu as “falhas” aos “processos de digitalização”. “Em 1998, os discursos eram registrados em fitas em formato digital. Posteriormente, essas fitas foram gravadas em CDs e, depois, esses CDs foram redigitalizados para o formato atual”, respondeu.
Questionada esta semana sobre o motivo de o áudio ter reaparecido na íntegra, a Câmara alegou que uma mudança no sistema que armazena os áudios permitiu a recuperação desse e de outros arquivos que estavam corrompidos.
Veja a íntegra da resposta:
“A interface Arquivo Sonoro, que permite ao usuário ouvir os trechos de áudio das reuniões e sessões no portal da Câmara, foi atualizada no final do ano passado, pois a anterior apresentava travamentos constantes. Essa atualização causou erro na reprodução de alguns trechos de áudio, fazendo com que apenas o início e o fim fossem reproduzidos.
Esse erro aconteceu com o áudio das sessões e reuniões gravadas pelo Sisaudio Versão 1.0, sistema que armazena os áudios originais. Foram gravadas nessa versão do Sisaudio 39.815 sessões e reuniões, todas elas com possibilidade de apresentar cortes aleatórios nos áudios. Não houve falha de aplicação da nova interface do Arquivo Sonoro com o Sisaudio Versão 2.0, sistema que passou a ser utilizado para gravar as sessões e reuniões após dezembro de 2012.
A correção do problema foi realizada no dia 30/01/23. Não foi necessária qualquer edição no áudio original das sessões e reuniões gravadas. Apenas a interface Arquivo Sonoro foi alterada. Agora todos os áudios das sessões e reuniões gravadas, pelas duas versões do Sisaudio, estão disponíveis de forma íntegra no portal.
Assessoria de Imprensa
Câmara dos Deputados”
Confira o áudio do discurso na versão anteriormente publicada pela Câmara (o corte ocorre a 1 min 36s):
O corte ocorre logo depois de Bolsonaro dizer: “O americano vendo isso…” Há o corte de todo o restante do parágrafo e do parágrafo seguinte, que assim começa: “Até vale uma observação neste momento: realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente” .
Veja no Diário Oficial da Câmara a íntegra do discurso de Bolsonaro (em amarelo, o trecho suprimido do áudio)
Veja nas notas taquigráficas da Câmara a a íntegra do discurso de Bolsonaro (em amarelo, o trecho suprimido do áudio)
Crise humanitária
Por causa da crise humanitária enfrentada pelos Yanomami, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou no último dia 30 a investigação da “possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas”.
As investigações são conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pelo Ministério Público Militar, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e pela Polícia Federal. No último dia 20, o Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública no território Yanomami brasileiro. Estima-se que 99 crianças morreram apenas em 2022 vítimas de desnutrição. Moradores da terra indígena sofrem com a ação do garimpo ilegal, a malária, a desnutrição e a falta de atendimento médico. Dezenas de pedido de socorro foram ignorados pelo governo Bolsonaro.