Na manhã de 15 de abril de 1998, o então deputado Jair Bolsonaro (RJ) subiu à tribuna da Câmara para repercutir a declaração de um general das Forças Armadas dos Estados Unidos que defendia a intervenção norte-americana na Amazônia. Bolsonaro aproveitou o gancho para criticar a “Cavalaria brasileira” por não ter dizimado os indígenas, tal como haviam feito os Estados Unidos.
“Até vale uma observação neste momento: realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema”, discursou o então deputado do chamado baixo clero, grupo de parlamentares sem expressão política e apegado a questões mais corporativas e paroquiais.
O discurso pode ser encontrado no site da Câmara, tanto no Diário da Câmara quanto no registro das notas taquigráficas. Mas o áudio, com a voz de Bolsonaro, desapareceu dos registros da Casa. O pronunciamento está nos arquivos sonoros, mas o trecho em que o então deputado elogia a cavalaria norte-americana pelo massacre indígena desapareceu. Foram, ao todo, quatro parágrafos e meio suprimidos. O corte é claramente perceptível.
Leia também
Confira o áudio: o corte ocorre a 1min36s.
O corte ocorre logo depois de Bolsonaro dizer: “O americano vendo isso…” Há o corte de todo o restante do parágrafo e do parágrafo seguinte, que assim começa: “Até vale uma observação neste momento: realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente” .
PublicidadeVeja no Diário Oficial da Câmara a íntegra do discurso de Bolsonaro (em amarelo, o trecho suprimido do áudio)
Veja nas notas taquigráficas da Câmara a a íntegra do discurso de Bolsonaro (em amarelo, o trecho suprimido do áudio)
Extinção da reserva yanomami
Também sumiu o trecho em que Bolsonaro lamenta a rejeição da urgência para a votação do seu projeto de decreto legislativo que anulava a reserva yanomami. Por 290 votos a 125, os deputados rejeitaram em 30 de agosto de 1995 acelerar a análise do projeto, que acabou arquivado posteriormente. Bolsonaro ainda tentaria outras três vezes, como mostrou o Congresso em Foco, tornar sem efeito a demarcação das terras dos Yanomami.
Ficou de fora, ainda, o trecho em que Bolsonaro diz que dava razão aos militares norte-americanos de quererem intervir na Amazônia. Segundo ele, os indígenas brasileiros não sabiam o que fazer com a terra que têm sob seu controle.
“Particularmente, colocando-se no lugar deles, eles estão muito certos. Afinal de contas, Bismark disse há algum tempo: ‘As riquezas naturais nas mãos de quem não sabe ou não as quer esperar constitui permanente perigo para quem as possui.’ E aqui no Brasil a nossa Amazônia está relegada a terceiro plano também, como os professores”, defendeu.
O áudio só retorna a partir da frase: “E finalmente, a questão dos grandes espaços vazios”, quando Bolsonaro conclama: “Este Congresso tem de parar de pensar pequeno”.
Embora ainda existam os registros por escrito tanto no Diário da Câmara quanto no registro das notas taquigráficas, é inegável que o áudio do discurso com a própria voz de Bolsonaro teria um maior peso como registro histórico. No entanto, esse áudio não existe mais. Ou, se existe, foi sem explicação suprimido dos anais do poder Legislativo.
O Congresso em Foco questionou a Câmara sobre o motivo de trechos daquele discurso de Bolsonaro terem sumido dos registros. A assessoria de comunicação da Casa atribuiu as “falhas” aos “processos de digitalização”. “Em 1998, os discursos eram registrados em fitas em formato digital. Posteriormente, essas fitas foram gravadas em CDs e, depois, esses CDs foram redigitalizados para o formato atual”, respondeu.
A reportagem também solicitou os registros em vídeo do pronunciamento de Bolsonaro. Naquela ocasião, já havia a TV Câmara e as sessões já eram transmitidas e gravadas. Mas não houve resposta até o momento. Este texto será atualizado caso a gravação seja enviada. Por enquanto, fica oculta a voz de Bolsonaro e o seu elogio à cavalaria dos Estados Unidos por ter dizimado seus povos indígenas.
Genocídio
Por causa da crise humanitária enfrentada pelos Yanomami, o ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou nessa segunda-feira (30) a investigação da “possível participação de autoridades do governo Jair Bolsonaro na prática, em tese, dos crimes de genocídio, desobediência, quebra de segredo de justiça, e de delitos ambientais relacionados à vida, à saúde e à segurança de diversas comunidades indígenas”.
As investigações serão conduzidas pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pelo Ministério Público Militar, pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e pela Polícia Federal. Como o inquérito corre em sigilo, não foi divulgado o nome dos investigados. No último dia 20, o Ministério da Saúde declarou emergência de saúde pública no território Yanomami brasileiro. Estima-se que 99 crianças morreram apenas em 2022 vítimas de desnutrição. Moradores da terra indígena sofrem com a ação do garimpo ilegal, a malária, a desnutrição e a falta de atendimento médico. Dezenas de pedido de socorro foram ignorados pelo governo Bolsonaro.