Allan Titonelli Nunes *
No próximo dia 05 de outubro comemoraremos 30 anos da promulgação da Constituição de 1988. Assim, vale resgatar, ainda que perfunctoriamente, o ambiente político anterior à sua formalização. Começamos em 1979, quando o último dos presidentes militares, João Baptista de Oliveira Figueiredo, tomava posse sob pressão de fazer a transição para a democracia, ante uma grave crise social, política e econômica que atravessava o país. Já em seu primeiro ano de governo foi aprovada a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, que concedia anistia a todos que cometeram crimes políticos e eleitorais, bem como aqueles que tiveram seus direitos políticos restritos, entre setembro de 1961 e agosto de 1979.
Em 1982 a população reconquista o direito de votar em uma eleição direta de governador, abrindo caminho para uma grande campanha “pelas diretas já” para as eleições presidenciais seguintes. Todavia, mesmo com o maciço apoio dos cidadãos, vários comícios e passeatas emblemáticas, a Câmara dos Deputados não aprovou a emenda constitucional das diretas, faltando apenas 22 votos.
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Ocorre que nem tudo nesse período de abertura política ocorreu pacificamente, pois uma parte de militares mais radicais tentaram instaurar o caos, conspirando e promovendo tumultos, objetivando a manutenção do poder, cujo ápice e declínio do movimento foi retratado pelo atentado fracassado do Riocentro, em 1981.
Enfim houve a eleição indireta para presidente de 1985, cujo Colégio Eleitoral escolheu Tancredo Neves como presidente e José Sarney de vice. Porém Tancredo Neves acabou não tomando posse, tendo em vista uma doença às vésperas do referido ato solene, que acabou culminando com sua morte. Logo, após 21 anos de ditadura assume a presidência José Sarney, que convoca uma Assembleia Nacional Constituinte para 1986, a qual culminou com a promulgação da presente Constituição em 05 de outubro de 1988.
O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, nominou-a de cidadã, posto que colocava fim a um ciclo ditadorial, inaugurando uma nova era democrática, com direitos e garantias fundamentais aos cidadãos entre suas cláusulas pétreas, cujas premissas podem ser sintetizadas no seu artigo primeiro. (A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político.)
Destaca-se, eminentemente, a alteração da forma de governo, que dará ensejo a toda uma mudança estrutural. Assim, reinauguramos a República, que tem como característica primordial a participação popular e a democracia, cuja expressão advém do latim res publica, que significa coisa pública. Em contraposição colocamos fim a um governo centralizador e ditadorial, dirigido por e para poucos, cujos interesses não se coadunavam com a vontade popular.
Como já asseverado, a expressão máxima da República é a democracia, que tem seu conceito interligado à participação do cidadão nas decisões políticas. Todavia, essas premissas estão cada vez mais sendo atacadas sem que a população perceba.
É natural que, psicologicamente e antropologicamente, após tanto tempo de democracia tenhamos esquecido de como algumas práticas centralizadoras e controladoras eram nefastas. Elas retomaram o debate político atual, seja por meio de discussões sobre o controle da imprensa; pela utilização do bem público como se privado fosse; pelo apelo a uma “Constituição de Notáveis” sem a participação popular; seja por meio do incentivo ao extermínio ou dissolução de agremiações partidárias; entre outras.
Somado ao exposto, a piora na prestação dos serviços públicos, o aumento gradual e contínuo da carga tributária, o desperdício do dinheiro da nação e os desvios de conduta contra o patrimônio do povo provocaram um quadro generalizado de insatisfação, culminando com as manifestações de junho de 2013, popularmente conhecidas como jornadas de junho.
As mobilizações se dirigiram contra algumas formas aristocráticas de manifestação do poder por parte de políticos, que ainda não entenderam o conceito de democracia plena, ao se utilizarem da coisa pública como privada. Vide as moradias palacianas, gabinetes exuberantes, viagens às custas do erário, uso de aviões e helicópteros oficiais, etc…
Vale rememorar que as manifestações populares sempre decorreram de insatisfações reprimidas da sociedade, entre elas a exigência dos direitos e garantias mínimas ao cidadão, o combate ao arbítrio por parte do Estado, a defesa da liberdade, etc. Bandeiras que fazem parte da história do mundo – vide o exemplo das revoluções Inglesa, Francesa e Russa.
Em todas essas revoluções houve uma ruptura com a estrutura política dominante por meio da participação direta do povo. Essa participação popular direta remonta às ágoras gregas, em que cidadãos decidiam as principais questões políticas por meio da soma das manifestações individuais reunidas, cujas mobilizações de junho de 2013 reacenderam esse ideário por mudanças.
Não por outra razão nossa Carta Magna proclama, no parágrafo único do seu primeiro artigo, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (…)”. O dispositivo deixa claro que a vontade popular deveria ser a premissa básica de nossa democracia.
Quando o quadro político caminhava para o alinhamento com muitos propósitos das jornadas de junho, a última reforma eleitoral, a pretexto de encampar sugestões da sociedade civil por mudanças, acabou frustrando as expectativas, uma vez que privilegiou os políticos tradicionais, em que a diminuição do período eleitoral dificultou o conhecimento dos novos candidatos pelo povo. Além disso, o fundo eleitoral foi usado, em termos gerais, para favorecer os detentores de mandatos eletivos.
Um exemplo do descolamento dos interesses dos cidadãos e das classes políticas pode ser aferido pelas últimas pesquisas de avaliação do grau de confiabilidade das instituições, em que os partidos políticos e o Congresso Nacional estão nas duas últimas colocações [1]. Inevitável concluir que é preciso mudar as práticas políticas. Até porque o nosso sistema eleitoral é confuso, assim como permite a manutenção do poder nas mãos dos partidos políticos e seus caciques, um dos balizadores para as péssimas avaliações.
Diante desse cenário, o debate sobre as candidaturas avulsas passou a tomar conta da pauta popular. O fim do quociente eleitoral, de outro lado, tem gerado reclamações, uma vez que não faz sentido para o eleitor que as eleições proporcionais (deputados e vereadores) possibilitem eleger candidatos com menor número absoluto de votos em detrimento dos mais votados.
A figura do suplente de senador também causa diversos questionamentos, uma vez que o voto é pessoal e não admite trocas infinitas de suplentes que não foram votados. Por outro lado, porque não substituir o senador afastado pelo segundo colocado das eleições?
A incompatibilidade do exercício de cargos no Poder Executivo pelos membros do Poder Legislativo talvez gere a confiança de que o eleito cumprirá as promessas de campanha. Isso porque ninguém concorre ao Poder Legislativo dizendo que será secretário de estado/município ou ministro, consubstanciando-se em verdadeira fraude ao eleitor assumir outra função.
Enfim, o anseio por uma verdadeira reforma política passa por uma mudança de rumo dos partidos. Em vez de promoverem a democracia, privilegiando as eleições em seus diretórios, eles se acostumaram a praticar intervenções sob argumentos subjetivos de que não seguiram orientação da direção nacional, tudo sob o beneplácito das leis editadas pelo Congresso Nacional. Além dos “eternos” diretórios provisórios. Como professar a defesa da democracia e da participação popular se os partidos políticos fazem de tudo para excluí-la?!
A democracia não pode ser apenas no papel, enganando o povo em relação à sua pseudoparticipação. Nas palavras de José Saramago: “A democracia não se pode limitar à simples substituição de um governo por outro. Temos uma democracia formal, precisamos de uma democracia substancial”. [2]
Esse distanciamento da realidade da classe política quanto ao anseio de maior participação popular direta poderá nos levar a uma ruptura não desejável. É preciso que os candidatos entendam o recado e os eleitos promovam as mudanças almejadas pelo povo, em atenção à máxima efetividade da vontade popular, aos mecanismos de participação cidadã e à concretização dos preceitos Constitucionais.
* Procurador da Fazenda Nacional, especialista em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Direito Tributário pela Unisul. Foi presidente do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. É membro fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
[1] Grau de confiança nas instituições. Datafolha. Junho de 2018. Disponível em: <http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2018/06/15/e262facbdfa832a4b9d2d92594ba36eeci.pdf> Acesso em: 18/09/2018.
[2] AGUILERA, Fernando Gomes (Org.). As palavras de Saramago: catálogo de reflexões pessoais, literárias e políticas. São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 388.