Quanto tempo após a realização de uma reforma seria prudente aguardar a fim de se propor nova mudança legislativa? Confesso que essa questão não me sai da cabeça desde que a Câmara dos Deputados aprovou em plenário no último dia 9 de julho a reforma da reforma do ensino médio.
Não deixa de ser intrigante o quanto no Brasil esse processo que apelido aqui de “reforma da reforma” oriundo das discussões no âmbito do Legislativo está presente em diferentes áreas importantes. Rapidamente, destaco a área da previdência, a qual entre 1993 e 2022 já passou por ao menos sete reformas e, mais recentemente, a eterna alteração de aspectos relacionados às eleições em anos ímpares (reforma eleitoral) que entre 2013 e 2023 experimentou ao menos uma alteração a cada seis meses no Congresso Nacional. Alguém duvida que, logo mais, debateremos sobre a reforma da reforma tributária, cujo projeto ainda se encontra em atual fase de regulamentação, mas já desperta críticas contundentes a ponto de se esboçar possíveis mudanças em curto prazo? Entender as razões que levam ao contínuo reformismo é importante para se compreender a política do país. Farei um exercício à luz do novo ensino médio.
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Muita atenção vem sendo dada pelos principais meios de comunicação a respeito do que foi substancialmente alterado através do Substitutivo do relator do projeto, deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), ao PL 5.230/23 de autoria do Poder Executivo. Em votação simbólica, a Câmara dos Deputados aprovou o parecer do relator que descartou a maioria das mudanças previamente realizadas pelo Senado, como a inclusão do espanhol na condição de disciplina obrigatória e alterações propostas na distribuição da carga horária. Entre os partidos, somente Psol, PDT e PC do B se posicionaram contrários ao parecer, o qual foi costurado politicamente junto ao PT e ao presidente Lula, sendo razoável supor que o texto será posteriormente sancionado sem vetos da presidência.
As mudanças que mais chamam a atenção no substitutivo podem ser resumidas nos seguintes itens: a) manutenção do aumento originalmente proposto no projeto para a Formação Geral Básica (FGB) de 1.800 para 2.400 horas considerando-se os três anos do Ensino Médio para os alunos que não optarem pelo técnico; b) manutenção da carga horária total de 3.000 horas ao longo dos três anos (5 horas distribuídas em 200 dias letivos); c) necessidade de escolha, por parte dos alunos, sobre como complementarão as 3.000 horas com as 600 horas restantes em relação às 2.4000 da FGB, sendo que nesse caso deverão optar por um entre os quatro possíveis itinerários formativos – linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias ou ciências humanas e sociais aplicadas; d) manutenção da alteração proposta pelo Senado de disponibilizar na sede de cada um dos municípios brasileiros ao menos uma escola da rede pública com oferta de ensino médio regular no período noturno; e) no caso do ensino técnico, definição da FGB de 1.800 horas, sendo que outras 300 horas poderão ser destinadas para aprofundamento de disciplinas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) relacionada à área técnica estudada a fim de se somar 2.100 horas (total da FGB no técnico) e, as demais 900 horas restantes das 3.000 necessárias para o ciclo, serão distribuídas em disciplinas do curso técnico ofertado; f) cada escola deverá oferecer, no mínimo, dois entre os quatro itinerários formativos desenhados; as diretrizes desse novo ensino médio deverão estar prontas até o final de 2024 com a aplicação das regras já valendo em 2025; g) a partir de 2027 o processo de seleção para o ensino superior deverá levar em conta as diretrizes fixadas, sendo que o estudante poderá optar por uma das áreas de conhecimento em relação ao aprofundamento dos itinerários e, inclusive, pode vir a realizar as provas em área diferente da cursada ao longo do Ensino Médio e; h) em relação ao ensino à distância em casos excepcionais, foi mantida a posição do relator de desconsiderar as alterações do Senado e permitir o “ensino mediado por tecnologia”, sendo que os senadores tinham definido “ensino presencial mediado por tecnologia”.
De modo geral é possível perceber que se tratam de alterações legais em aspectos da distribuição das cargas horárias com vistas a diminuir no cômputo total das horas do Ensino Médio os chamados itinerários formativos e retomar as horas destinadas à FGB. Mas para se entender uma reforma da reforma é importante lembrar o que originalmente havia levado a uma reforma.
Em 2017 o texto que chegou ao Legislativo era resultado inicialmente de uma Medida Provisória do governo Michel Temer, guiada pela perspectiva de que o ensino médio precisava se tornar mais atrativo para o público jovem e proporcionar uma formação com orientação mais clara aos objetivos mercadológicos devido a sua baixa qualidade associada às altas taxas de abandono e reprovação. Deriva desse diagnóstico a ideia de flexibilizar o currículo nessa etapa de formação, o que culminou da aprovação dos itinerários formativos. De lá para cá o problema é como isso tem sido executado, sendo que além de tornar o ensino ainda mais fragilizado, em muitos estados haviam dezenas de itinerários formativos sem conexão com os conteúdos propostos. Ademais, vale salientar que embora o diagnóstico da má qualidade seja muito razoável a nível de Brasil é muito superficial supor que um problema dessa magnitude pudesse ser corrigido a nível de currículo escolar. Evidentemente o problema é muito mais complexo e multifacetado, passando por questões que vão desde a gestão do sistema escolar até as condições de trabalho, vínculos das escolas com as comunidades, etc. Para ilustrar esse verdadeiro drama educacional, dados do Censo Escolar de 2023 já apontavam que a taxa de repetência no Ensino Médio ainda é a mais alta da Educação Básica, com 3,9% e, a taxa de evasão, de 5,9%. Isso sem contar os contrastes regionais, as desigualdades raciais e os desafios estruturais do sistema.
PublicidadeQuando o presidente Lula apresentou ao Legislativo em outubro do ano passado o PL 5.230/23 o fez, principalmente, após suspensão do cronograma de execução do Novo Ensino Médio uma vez que se aproximava os efeitos pós-reformas sobre o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2024. Isso ocorreu em um contexto de muita pressão de parte do professorado, dos estudantes, sindicatos do setor e comunidade escolar a respeito dos efeitos produzidos pela reforma de 2017 nessa etapa de ensino, cujas críticas se tornaram mais intensas. Após a realização de uma consulta pública, o ministro da Educação, Camilo Santana (PT) entregou à Comissão de Educação do Senado em agosto de 2023 um documento com uma série de alterações propostas para o ensino médio a fim de que ambos os Poderes já pudessem articular, em conjunto, as alterações legislativas. O texto, após ser debatido e votado pelos senadores, seguiu para a Câmara dos Deputados.
Na última semana, quando foi colocado em votação pelo presidente da casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), na base de muita reclamação no momento de deliberação em Plenário, o substitutivo ao PL 5.230/23 do relator Mendonça Filho simplesmente desconsiderou dezenas de mudanças feitas pelo Senado, atenuando mudanças mais substanciais à Reforma de 2017. Nem é preciso lembrar que o ministro da Educação de Michel Temer em 2017 era o próprio deputado-relator em 2024 da “reforma da reforma” do Ensino Médio tendo se posicionado em diversos momentos de modo extremamente otimista com as mudanças que haviam sido feitas há sete anos.
Diante do quadro exposto, nova pergunta: alguma dúvida que logo debateremos a “reforma da reforma da reforma” ou a pressão de diversos setores em prol da revogação do ensino médio? É sempre salutar lembrar que por mais boas intenções que muitos possam ter ao longo desse debate o que prevalece, no final das contas, é o quadro de correlação das forças políticas. O fato de não ter uma maioria estável no Legislativo tem custado – e muito – para o atual governo. Ao mesmo tempo que procura ouvir as bases, precisa negociar o quanto pode a fim de não derreter a já combalida base de sustentação política. A votação recente das mudanças no novo ensino médio é só mais um capítulo dessa história.
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