Em princípio, nenhuma lei deve ser feita para atender a um interesse específico, ou individual. O art. 37, “caput” da Carta Magna estabelece a observância pela Administração do princípio da impessoalidade, e os próprios regimentos das Casas do Congresso preveem regras de impedimento: na forma do art. 43 do Regimento da Câmara, nenhum deputado poderá presidir reunião de comissão quando se debater ou votar matéria da qual seja autor ou relator, e não pode o Autor de proposição ser dela relator, ainda que substituto ou parcial.
A Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813, de 2013), visa evitar situações em que a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública, e define como tal, entre outras, divulgar ou fazer uso de informação privilegiada, em proveito próprio ou de terceiro, obtida em razão das atividades exercidas e exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe.
Assim, em tese, uma Lei que, como pretende o Projeto de Lei nº 2896/2022, da deputada Celina Leão, aprovado pela Câmara dos Deputados em 12 de dezembro de 2022, e que aguarda apreciação no Senado Federal, tenha “endereço certo” e CPF determinado, seria, intrinsecamente, inconstitucional. O texto aprovado acolheu a Emenda da Relatora, deputada Margarete Coelho, introduzindo alteração à Lei nº 13.303, de 2016, reduzindo de 36 meses para 30 dias o período de impedimento a quem tenha atuado em estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a campanha eleitoral para fins de exercício de cargo de administrador de empresa pública ou sociedade de economia mista, bem como membros de conselhos da administração.
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Essa emenda vem sendo apontada como a “Emenda Mercadante”, visto que surge no contexto em que o presidente eleito anuncia como futuro presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social o professor, ex-deputado, ex-senador, ex-ministro, presidente da Fundação Perseu Abramo, e coordenador do programa de governo e coordenador técnico da equipe de transição do governo eleito. Por ter atuado, portanto, nessas funções durante o período eleitoral, principalmente, surgiram entendimentos de que o professor Mercadante estaria impedido pela Lei nº 13.303/2016. Assim, ela afastaria a vedação, de forma casuística e personalista, embora não se dirija a um único caso, mas alcançaria todo e qualquer indivíduo que, atualmente, se ache impedido pela Lei de assumir aqueles cargos. Matérias jornalísticas estimam que seriam cerca de 600 cargos que, sem a vedação, poderiam ser “disputados” por indicações políticas, prejudicando a governança corporativa das estatais e ampliando as possibilidades de corrupção, tráfico de influência e patrimonialismo.
A tudo isso, o “mercado” reage como sempre: aumenta a cotação do dólar; caem as ações das estatais em bolsas de valores. A desconfiança é verbalizada em relatórios de entidades que prestam consultoria ao “mercado” e o rastilho de pólvora acaba contaminando os debates no Legislativo.
Mas os “analistas” deixam de considerar vários aspectos da questão.
O primeiro deles é que a Lei nº 13.303, de 2016, é, de forma irremediável, inconstitucional. E essa inconstitucionalidade precede qualquer discussão sobre eventuais vícios do próprio Projeto de Lei nº 2.896/2022.
Em sua totalidade, ela invadiu a iniciativa privativa do chefe do Executivo para enviar ao Congresso o projeto de lei para regulamentar o disposto no art. 173 da Constituição. Essa Lei resultou de uma comissão mista de deputados e senadores, constituída ainda no governo Dilma, que elaborou uma proposta, aprovada pelo Senado, sob a relatoria do senador Tasso Jereissati; enviada à Câmara, sofreu alterações. No retorno ao Senado, algumas delas foram acatadas e outras não. O texto legal foi promulgado já no governo Michel Temer.
Esse vício, insanável pela sanção presidencial, contudo, até o momento não foi examinado pelo Supremo Tribunal Federal, que desde 2017 tem sob seu crivo a ADI 5.624.
Tampouco foram examinadas as inconstitucionalidades materiais, também apontadas em várias ADI, além da ADI 5.624. Entre eles, ressalta-se, pela oportunidade do debate, a do art. 17 da Lei das Estatais.
Por meio desse dispositivo, a Lei fixou regras para a investidura de cidadãos em cargos de membros de Conselho de Administração ou em cargos de direção nas empresas públicas e sociedades de economia mista, do ponto de vista de suas qualificações profissionais e integridade, mas indo muito além disso, em ofensa ao princípio da razoabilidade e, ainda, aos direitos fundamentais assegurados pelo art. 5º, XVII e art. 8º, III da Constituição.
Segundo registram Musacchio e Lazzarini, uma das razões apontadas por estudos internacionais para explicar a “ineficiência” das empresas estatais seria, ao lado da carência de incentivos aos seus gestores e de sistemas de monitoramento adequados, além de outras, a má seleção dos próprios gestores.
Contudo, estabelecer critérios e requisitos, e sistemas e métodos para a seleção de dirigentes das empresas estatais requer a observância dos limites impostos pela Constituição, e o reconhecimento de que elas integram o Poder Executivo, e dependem da iniciativa desse Poder para a definição dessas regras, não cabendo ao Legislativo, sem essa iniciativa, adotar tais medidas, tanto mais quando resultam discriminatórias e contrárias aos direitos individuais.
Veja-se que para além da já mencionada invasão de iniciativa privativa, ao fixar como requisitos para investidura em tais cargos requisitos de experiência profissional e formação acadêmica compatível com o cargo, e não estar enquadrado em hipóteses de inelegibilidade, o § 2º define um amplo rol de vedações para tais indicações, a seguir transcritas:
“2o É vedada a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria:
I – de representante do órgão regulador ao qual a empresa pública ou a sociedade de economia mista está sujeita, de Ministro de Estado, de Secretário de Estado, de Secretário Municipal, de titular de cargo, sem vínculo permanente com o serviço público, de natureza especial ou de direção e assessoramento superior na administração pública, de dirigente estatutário de partido político e de titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados do cargo;
II – de pessoa que atuou, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral;
III – de pessoa que exerça cargo em organização sindical;
IV – de pessoa que tenha firmado contrato ou parceria, como fornecedor ou comprador, demandante ou ofertante, de bens ou serviços de qualquer natureza, com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade em período inferior a 3 (três) anos antes da data de nomeação;
V – de pessoa que tenha ou possa ter qualquer forma de conflito de interesse com a pessoa político-administrativa controladora da empresa pública ou da sociedade de economia mista ou com a própria empresa ou sociedade.”
No caso do inciso I do § 2º, as restrições mostram-se irrazoáveis, à medida que impedem, diretamente, o exercício da supervisão ministerial por meio da participação de autoridades diretamente relacionadas à gestão das políticas públicas setoriais em conselhos de administração, adotando perspectiva discriminatória, dado que, se a autoridade tiver, simultaneamente, “vínculo permanente com o serviço público”, ou seja, for servidor público civil, ou militar, ou empregado público, estará afastada tal restrição. Exemplificando: se o ministro de Minas Energia for servidor público ocupante de cargo efetivo em qualquer órgão ou entidade da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos municípios, ou empregado de uma empresa estatal (por exemplo, Petrobras e Eletrobrás), poderá ter assento em qualquer conselho de empresa estatal; se, todavia, não o for, estará impedido de exercer essa função.
Igual absurdo se verifica no mesmo inciso I, contrariando o princípio da igualdade firmado no “caput” do art. 5º da Constituição, quando fica impedido de ser nomeado para cargos de diretor ou conselheiro em empresa estatal quem seja dirigente estatutário de partido político, mesmo que licenciado, devendo o indivíduo, assim, renunciar ao exercício de seus direitos políticos para que seja investido em cargos de gestão em empresa estatal.
Da mesma forma, a restrição contida no inciso II do § 2º, em especial, ofende diretamente ao “caput” do art. 5º da CF, pois estabelece impedimento pelo simples fato de o indivíduo haver participado nos 36 meses anteriores de estrutura decisória de partido político, ou mesmo haver apenas prestado algum tipo de serviço vinculado à organização, estrutura e realização de campanhas eleitorais.
É evidente excesso, que parte da lógica da criminalização da militância partidária, ou da concepção de que a simples participação nessas atividades e a posterior investidura em cargos de direção em empresas estatais revela conduta imprópria a ser punida. Assim, se o indivíduo pretende, algum dia, exercer cargos em empresas estatais, não poderá ter militância partidária, ou atuação em campanhas políticas, de qualquer espécie, sob pena de ficar “inviabilizado” por trinta e seis meses.
Mais grave ainda é a incompatibilidade prevista no inciso III do § 2º, que impede a investidura tanto em cargo de conselheiro quanto em cargo de direção em empresa estatal “de pessoa que exerça cargo em organização sindical”. Qualquer que seja o cargo, eletivo ou não, exercido em organização sindical, gera a referida incompatibilidade.
O impacto dessa restrição é de enorme gravidade.
A Lei nº 12.353, de 28 de dezembro de 2010, prevê a participação de representante dos empregados nos conselhos de administração das empresas públicas e sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas e demais empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto, ressalvadas as empresas que tenham um número inferior a duzentos empregados próprios. Segundo o art. 2º, § 1º da referida Lei, o representante dos trabalhadores será escolhido dentre os empregados ativos da empresa pública ou sociedade de economia mista, pelo voto direto de seus pares, em eleição organizada pela empresa em conjunto com as entidades sindicais que os representem.
O art. 19 da Lei nº 13.303, de 2016, assegura a participação, no Conselho de Administração, de representante dos empregados e dos acionistas minoritários, assim como a aplicação das normas previstas na Lei no 12.353, de 28 de dezembro de 2010, à participação de empregados no Conselho de Administração. No entanto, não afasta a restrição contida no inciso III do §2º do art. 17.
Dessa maneira, com a aplicação do inciso III em questão, ficam impedidos de exercer tais cargos os que estejam no exercício de quaisquer cargos em organização sindical. Assim, dirigentes sindicais, delegados sindicais, conselheiros de sindicatos e outros dirigentes sindicais, caso sejam eleitos por seus representados para exercerem tais cargos de conselheiros, estarão impedidos de exercer ambas as representações, hipótese de vedação que não tem guarida constitucional.
Ao assim dispor, simultaneamente fere a norma, também, o art. 8º da CF, que assegura a livre associação profissional ou sindical, de que é corolário votar e ser votado para cargos de direção sindical, restringindo, ainda, o exercício da representação sindical plena, assegurado pelo inciso III desse artigo.
Como preleciona Carlos Roberto de Silveira Castro, o princípio da razoabilidade, conquanto não seja expresso, mas implícito na ordem constitucional, deve ser observado para a delimitação do exercício legítimo da atividade legislativa, sendo nula a Lei que não o atenda. Segundo esse Autor,
“A moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo, ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas, Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina. Se tal relação de identidade entre meio e fim – “mens-end relationship”, segundo a nomenclatura norte-americana – da norma classificatória não se fizer presente, de modo que a distinção jurídica resulte leviana e injustificada, padecerá ela do vício da arbitrariedade, consistente na falta de “razoabilidade” e de “racionalidade”, vez que nem mesmo ao legislador legítimo, como mandatário da soberania popular, é dado discriminar injustificadamente entre pessoas, bens e interesses na sociedade política.” (in CASTRO, Carlos Roberto de Silveira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. São Paulo: Forense, 1989).
A irrazoabilidade das restrições se coloca ainda mais evidente quando se alega que, para exercer cargos em Conselho de Administração ou de Diretoria, bastaria ao dirigente partidário ou ao trabalhador renunciar ao cargo de direção ou representação sindical para o qual tenha sido anteriormente eleito.
Trata-se de “embargos” ou cassação de direitos que não encontram guarida no sistema constitucional pátrio, e ainda, no caso dos trabalhadores, fere o espírito da Lei nº 12.353, de 28 de dezembro de 2010, que prevê a eleição pelos trabalhadores de um representante em cada conselho de Administração de empresa com mais de 200 empregados.
Ora, proibir que o representante eleito seja ocupante de cargo na organização sindical, obrigando-o a renunciar ao mandato sindical ou abrir mão de candidatar-se ao cargo de conselheiro, é invasão na autonomia sindical, e contraria o art. 8º da Constituição.
Igualmente, é contrariado pelo inciso I do § 2º do art. 17 o princípio da igualdade firmado no “caput” do art. 5º da Constituição, quando fica impedido de ser nomeado para cargos de diretor ou conselheiro em empresa estatal quem seja dirigente estatutário de partido político, mesmo que licenciado, devendo o indivíduo, assim, renunciar ao exercício do cargo.
Além do disposto na Lei, em 27 de dezembro de 2016 foi editado o Decreto nº 8.945, que “Regulamenta, no âmbito da União, a Lei no 13.303, de 30 de junho de 2016, que dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”
O referido Decreto, em seu art. 28, § 6º, determina que “aplica-se o disposto neste artigo aos administradores das empresas estatais, inclusive aos representantes dos empregados e dos acionistas minoritários, e também às indicações da União ou das empresas estatais para o cargo de administrador em suas participações minoritárias em empresas estatais de outros entes federativos.” Ou seja, mesmo no caso de empresas em que o ente estatal tenha participação apenas minoritária, aplicam-se as restrições.
No caso concreto, a indicação para cargo de direção em empresa estatal ou suas subsidiárias, de uma pessoa que exerceu cargo em fundação vinculada ao partido, ou coordenação de elaboração de programa de governo, não pode ser tida como explicitamente incompatível com a vedação legal.
A Fundação Perseu Abramo é uma entidade de direito privado instituída na forma de escritura pública, pelo Partido dos Trabalhadores, e tem como fins a pesquisa, a elaboração doutrinária e a contribuição para a educação política dos filiados do Partido dos Trabalhadores e do povo trabalhador brasileiro. Não integra, portanto, a estrutura de direção do partido e com ele não se confunde, jurídica e materialmente. Tem patrimônio próprio e gestão independente, com autonomia para contratar com instituições públicas e privadas, prestar serviços e manter estabelecimentos de acordo com suas finalidades, podendo, ainda, manter intercâmbio com instituições não nacionais e é regida pelo Código Civil brasileiro, conforme previsto no art. 53 da Lei nº 9.096, de 19.09.1996 – a Lei dos partidos políticos. A mesma lei prevê em seu art. 37, § 14, que “o instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política não será atingido pela sanção aplicada ao partido político em caso de desaprovação de suas contas, exceto se tiver diretamente dado causa à reprovação”. A parcela de recursos a elas destinada pelo Fundo Partidário não se confunde com a que é destinada aos partidos políticos.
Já a atuação como membro de equipe envolvida com a elaboração de programa de governo tampouco pode ser confundida com as situações prevista na Lei 13.303 (participação em estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral). Se assim fosse, estariam afastados da possibilidade de ocupação de tais cargos milhares de cidadãos, inclusive não filiados a partidos políticos e que, num processo democrático amplificado, participam, voluntariamente, ou a convite, desses processos de discussão e elaboração de programas de governo.
A boa governança das empresas estatais, assim como dos órgãos públicos, é um imperativo que não pode ser ignorado. Integridade, transparência, responsividade, prestação de contas, eficiência, eficácia e efetividade, são requisitos que derivam da própria Carta Magna. Mas ao serem fixadas regras como as previstas no § 2º do art. 17 da Lei 13.303, vai-se além disso, limitando direitos de forma irrazoável e até inconstitucional.
A aprovação do projeto de lei em questão, se não afasta a inconstitucionalidade da Lei 13.303, de 2016, de forma definitiva, pelo menos a mitiga de forma a que eventual “conflito de interesses” ou incompatibilidade possam ser afastados em prazo de 30 dias antes da nomeação para os cargos de dirigente ou membro de conselho das estatais. Ela é, portanto, necessária e atende, minimamente, aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, que a Lei 13.303, de 2016, elaborada no contexto do punitivismo então em voga, não conseguiu contemplar.
Agiria bem o Supremo Tribunal Federal se, ao fim, examinasse os fundamentos da arguição de inconstitucionalidade que, há cinco anos, aguarda o seu julgamento. Enquanto isso, dada a presunção de validade da Lei, ela continua a gerar insegurança jurídica e permitir o questionamento quanto à legitimidade da nomeação de cidadãos para cargos de direção nas estatais, mas também nas agências reguladoras.
Vale lembrar, porém, que o atual marco legal já estabelece requisitos diversos para tais nomeações, em termos de experiência técnica e qualificação, além dos requisitos da Lei da Ficha Limpa e outros, voltados à proteção da integridade pública.
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