Luiz Alberto dos Santos*
Tramitando desde 20 de fevereiro de 2019, após mais de 60 dias de impasses, crises políticas, enfrentamentos e negociações, a Câmara dos Deputados acolheu, em 23 de abril, a admissibilidade da PEC nº 6/2019, que visa promover radicais alterações na Carta Magna para implementar o que o Governo Bolsonaro vem chamando de “Nova Previdência”.
A PEC nº 6/2019 tem conteúdo que, literalmente, joga por terra o arcabouço da seguridade social construído em 1998, e que, no que toca à Previdência, já foi objeto de várias reformas.
Desde a promulgação da Carta Magna, os direitos previdenciários estiveram sob constante ataque. Sua regulamentação se deu apenas em 1991, com quase três anos de atraso, mas já nesse ano se iniciava a “sanha reformadora”: a PEC 51/1991, o “Emendão” de Fernando Collor, já propunha a desconstitucionalização das regras previdenciárias dos servidores públicos. Dela, restou aprovada apenas a cobrança de contribuição do servidor civil para custeio da aposentadoria e pensão, regra que, até hoje, não alcança os militares. A revisão constitucional, em 1993, houvesse sido concluída com a aprovação do Parecer do Deputado Nelson Jobim, resultaria em radical reforma dos regimes previdenciários, tema que foi retomado já em 1995, com a aprovação, em 1998, da Emenda Constitucional (EC) 20/98, que, assim como a PEC 6/2019, pretendia, de início, promover ampla desconstitucionalização de direitos, que passariam a ser regidos por lei complementar. A EC 41, de 2003, seguida da EC 47, de 2005, promoveram profunda reforma nas regras de aposentadoria do servidor civil. A EC 70, de 2012, amenizou efeitos da EC 47, para o servidor aposentado por invalidez. Por fim, a EC 88, de 2015, alterou as regras para a aposentadoria compulsória no serviço público.
No atual contexto, o tema é abordado de forma ainda mais drástica: além da desconstitucionalização ampla das regras, que passariam em sua quase totalidade a ser disciplinadas em lei complementar, é aberta a possibilidade de implementação de um novo regime de capitalização na modalidade de contribuição definida. Esse novo regime, que substituirá o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), com aplicação para novos segurados, mas eventualmente, atingido também os atuais, deverá, porém, assegurar piso de um salário mínimo mediante um “fundo solidário”, que necessariamente terá que ser sustentado por toda a sociedade (mitigando a noção de capitalização individual).
Mas, ao passo em que desconstitucionaliza direitos, constitucionaliza restrições e supressão de garantias, eliminando a aposentadoria por tempo de contribuição em favor de aposentadoria com idade mínima, elevação de carência para 20 anos e redução de valores de benefícios, mediante elevação do período de cálculo e regra de apuração que exigirá 40 anos para a integralidade de uma renda média já rebaixada, restrições para acesso ao benefício de prestação continuada, retirada de direito de quem já se aposentou ao FGTS e indenização em caso de demissão, redução do direito ao abono salarial e salário família, obrigatoriedade de contribuição do trabalhador rural para acesso à aposentadoria e muitas outras regras destinadas a assegurar um ajuste fiscal de R$ 4,4 trilhões em 20 anos, dos quais 92% oriundos de perdas de direitos dos segurados do RGPS, e em especial do que percebem entre 1 e 2 salários mínimos.
A PEC 6/2019, analisada estritamente sob o prisma constitucional, evidencia um conjunto de inconstitucionalidades e aberrações jurídicas que demandaria um esforço enorme para que fosse superada a impossibilidade de sua aceitação, à luz das condições de admissibilidade estabelecidas pelo art. 60, § 4º da Constituição Federal, segundo o qual não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.
A PEC da Nova Previdência contém ofensas a 3 dessas quatro vedações, suprimindo competências dos Legislativos, retirando capacidades dos entes subnacionais, numa clara ofensa à forma federativa, e, ademais, afeta direitos e garantias, fragilizando a estabilidade das relações jurídicas, o princípio da confiança legítima, a dignidade humana, que é um dos fundamentos da República, os princípios da ordem social, materializados na seguridade social, e, ainda, os princípios e garantias da ordem tributária, com a ofensa à garantia de que não se instituirá tributo com efeito de confisco, nem tratamento diferenciado entre contribuintes.
Assim, houvesse a Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC) se debruçado, com o afinco necessário sobre a PEC 6/2019, ela não poderia ter sido admitida, ou, quando muito, teria que ser amplamente reformulada, o que implicaria em tornar a própria CCJC uma comissão voltada ao exame do mérito, já que superar as inconstitucionalidades demandaria mais do que a mera supressão de textos, dada a estrutura da proposta apresentada pelo Governo.
Não obstante declarações repetidas de que o Governo havia cumprido o seu papel ao enviar a proposta, cabendo ao Congresso aceitá-la ou modificá-la, a pressão do Poder Executivo sobre a sua reticente e inconsistente base de apoio levou ao desespero de alguns parlamentares, que pressionavam no sentido de que a Comissão apenas julgasse a admissibilidade, deixando o mérito para a Comissão Especial, mas sem observar que o texto ali sob exame era, por definição, inaceitável.
A omissão da CCJC, assim, decorreu do contexto político, e, embora a apreciação tenha demorado muito mais do que quando do exame da PEC 287/2016 – quando a CCJC aprovou a admissibilidade em apenas 9 dias – ou da PEC 40/2003 (que se conformou na EC 41/2003) – quando a CCJC aprovou a admissibilidade em 30 dias – a deliberação ignorou largamente os questionamentos apresentados em onze votos em separado, que examinaram, detalhadamente, as inúmeras inconstitucionalidades do texto apresentado pelo Executivo.
O Parecer do Relator sobre a Admissibilidade da PEC 6/2019 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, originalmente, concluía pela aceitação total do texto, sem, sequer, corrigir erros redacionais que foram admitidos até mesmo pelo Executivo. Após pressões e manifestações de Líderes do Centrão e outros partidos, que, inclusive, firmaram Nota Oficial em 26.03.2019 expressando contrariedade com a desconstitucionalização e agressões aos direitos dos mais pobres (trabalhadores rurais, idosos e pessoas com deficiência), e negociações com o Governo, o Relator apresentou parecer reformulado, acolhendo modificações supressivas de quatro itens da proposta original, mas que não afetam os principais problemas da PEC 6/2019.
Tais modificações, sob o prisma político, permitiram que o Governo granjeasse o apoio necessário à aprovação da admissibilidade, mas sem prejuízo de que os demais problemas sejam abordados e rediscutidos na Comissão Especial instalada em 25 de abril de 2019, e onde os partidos do “Centrão” terão maioria. A composição da comissão especial, por decisão do Presidente da Câmara, foi ampliada de 34 para 49 deputados, o que, pelo menos, permitirá uma participação mais representativa dos partidos.
Os itens alterados pela CCJC são os seguintes:
- Exclusão da modificação ao § 2º do art. 109 da Constituição, concernente à extinção do foro do Distrito Federal para a propositura de ações contra a União. A mudança contida no § 2º impediria que ações civis públicas ou ações populares, quando for parte a União, sejam ajuizadas no DF, devendo ser ajuizadas onde ocorrer o fato ou o ato impugnado, restringindo o acesso à justiça e tornando mais dificultoso o exercício do controle tanto pelos cidadãos quanto pelo Ministério Público e Defensorias Públicas, tanto em causas previdenciárias com quaisquer outras. Permanece, assim, a redação atual do dispositivo, permitindo que as causas intentadas contra a União sejam aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal. Contudo, a redação não solucionou os demais problemas contidos na alteração ao art. 109, como a nova redação dada ao seu § 3º, que limita o escopo da justiça estadual, quando não houver vara federal, a ações previdenciárias, e nos termos da Lei, permitindo a exclusão da capacidade da justiça estadual de apreciar tais ações, onerando ainda mais os segurados, e o novo parágrafo 6º, que autoriza a “avocação” pela Justiça Federal de qualquer ação que esteja tramitando na justiça estadual, quando houver “interesse jurídico” da União.
- Exclusão do novo § 4º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual disporia sobre o fim do pagamento da indenização compensatória e do depósito do fundo de garantia do tempo de serviço (FGTS), a partir da concessão da aposentadoria. Embora não tenha impacto fiscal, a mudança teria forte impacto social, em prejuízo do trabalhador aposentado ou que vier a se aposentar, que passaria a ser um “trabalhador de segunda classe” sem direito ao depósito na conta vinculada do FGTS e indenização compensatória (multa de 40% sobre o saldo do FGTS) em caso de demissão. Tratava-se, com efeito, de um “jabuti” que, além de contrariar o princípio da igualdade e o da dignidade, se mostrava mal redigido e até mesmo incoerente, quanto ao seus propósitos, traduzindo a lógica de que o aposentado – por já ter uma “renda” assegurada – poderia ter direitos menores (e custos menores ao empregador) na relação de emprego, e ser mais facilmente “descartado”.
- Exclusão da expressão “de iniciativa do Poder Executivo federal” no art. 40, § 1º; art. 201, §§ 1º e 10; e 201-A, todos da Constituição Federal; bem como no art. 3º, § 3º e no art. 5º, § 1º, do Capítulo III da PEC; e no art. 18, § 5º, do Capítulo V da PEC; e a expressão “de iniciativa do Poder Executivo” constante no art. 1º da PEC, na parte em que altera o art. 42, § 2º da Constituição Federal. Com a supressão, fica afastada restrição aos membros do Legislativo e aos Executivos estaduais de exercerem iniciativa em projetos de lei destinados a disciplinar temas relativos à previdência social, e aos regimes próprios, em especial. Tratava-se de mudança que, fragilizando as prerrogativas do Poder Legislativo – e também dos entes subnacionais – ofendia duplamente o art. 60, § 4º da CF.
- Supressão da alteração ao art. 40, § 2º, III, para retirar do texto constitucional a definição da idade para a aposentadoria compulsória do servidor público, transferindo a disciplina da matéria para Lei Complementar. Quanto a esse aspecto, a mera supressão não atende a qualquer objetivo de mérito, posto que não afasta a disciplina da matéria por lei complementar, nem mantém, no texto permanente, a idade atual para a aposentadoria compulsória, gerando uma lacuna constitucional sobre o tema, que será objeto de revisão pela Comissão Especial, obrigatoriamente. Assim, o questionamento quanto à possibilidade de que lei complementar poderia reduzir a idade da aposentadoria compulsória, atualmente fixada em 75 anos, abrindo espaço à nomeação de ministros de tribunais superiores, somente poderia ser satisfeito se o texto da Carta Magna em vigor fosse integralmente mantido, o que não decorre da solução adotada pela CCJC.
Em consequência, ainda, o Relator propôs a inversão do texto da PEC, passando o § 2º proposto a ser o § 1º, para assegurar correspondência temática com a atual estrutura do art. 4º. Essa “inversão” é presumida, posto que o relator apenas afirma que seria efetuada “alteração de técnica legislativa” com a “transposição do texto do § 2º do art. 40 da PEC para o § 1º deste mesmo artigo, a fim de que haja correspondência com o assunto tratado pelo atual art. 40, § 1º, da CF/88”. Dado que não foi proposta pelo Relator a supressão do § 1º originalmente proposto, dar-se-ia a mera inversão da ordem dos dispositivos.
Há, assim, um longo caminho pela frente, para que a PEC 6/2019 se torne aceitável, justa e adequada sob o prisma constitucional, sem falar nos aspectos de mérito. A Comissão Especial terá que apreciar todos esses aspectos, e, caso não o faça, estará mais uma vez sendo remetida ao Poder Judiciário a responsabilidade de interpretar e aplicar as garantias constitucionais, expurgando da ordem jurídica aberrações e graves ofensas ao Estado de Direito.
Tal como um macaco na loja de louças, o Governo Bolsonaro propôs uma peça legislativa que confirma a famosa frase do príncipe Otto Eduard Leopold von Bismarck-Schönhausen, Chanceler do Reich Alemão, segundo o qual “os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.” Trata-se do mesmo estadista que, nos anos 1880, criou naquele país o primeiro sistema de aposentadoria público do mundo. A “fábrica de salsichas” que gerou a PEC 6/2019 e a sua admissibilidade na CCJC não apenas envergonharia a memória de Bismark, subvertendo os princípios de proteção social por ele inaugurados, mas confirma a sua desconfiança quanto à qualidade do processo de elaboração das Leis.
*Advogado-Consultor Legislativo, Doutor em Ciências Sociais – Mestre em Administração. Professor da EBAPE/FGV. Sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas. Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Previdência Social
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Muito barulho por nada (por enquanto): a Lei 13.439/2017 e a terceirização
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