Mesmo para o observador mais desatento, a contínua e acelerada degradação do espaço político no Brasil é algo que não passa despercebido. Alguns elementos deste triste quadro completam significativos anos de existência, enquanto aspectos são bem mais recentes.
Nos últimos anos uma polarização política de baixíssimo nível tem obrigado a sociedade brasileira a conviver com o que existe de pior no gênero humano. Ouvimos discursos de ódio como algo natural. Preconceitos e discriminações são afirmados com convicção e até satisfação. Apelos à violência são lidos e ouvidos com frequência. A apologia ao uso de armas é comum. A defesa da tortura e de torturadores é realizada sem o mínimo pudor. A disseminação organizada e massiva de notícias falsas (fake news) acontece diariamente. Ações planejadas contra o ambiente democrático assumem proporções assustadoras.
O Congresso Nacional, especialmente na atual legislatura, assume uma postura retrógrada jamais vista. O clientelismo e o fisiologismo atingem patamares inacreditáveis. A farra com emendas parlamentares apresenta características difíceis de acreditar. Nessa seara, falta transparência, falta controle, falta eficiência no gasto público e falta o mínimo de decência.
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A Emenda Constitucional nº 133, de 22 de agosto de 2024, protagonizou: a) o perdão de certas dívidas partidárias; b) a redução das quotas para negros e pardos nos processos eleitorais; c) a ampliação da imunidade partidária para devolução de valores determinados em processos de prestação de contas, multas e condenações em processos administrativos ou judiciais e d) o refinanciamento de dívidas partidárias com isenção dos juros e das multas acumulados, aplicada apenas a correção monetária sobre os valores originais.
As eleições, sobretudo os debates, para a Prefeitura da cidade de São Paulo escancaram o que de pior existe em termos de comportamentos políticos. Os problemas reais do município e as propostas e políticas públicas para enfrentá-los ficaram em segundo, terceiro e quarto planos. As provocações mais baixas de um aventureiro irresponsável são respondidas na mesma moeda. O festival de agressões, acusações pessoais e ameaças parece não ter limites. O desrespeito ao eleitor atinge patamares raramente vistos na história política brasileira.
Nas últimas semanas, uma preocupante proposição legislativa despertou a atenção dos setores mais consequentes da sociedade brasileira. “O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), uma rede de organizações da sociedade civil que busca um cenário político e eleitoral mais justo e transparente, vem a público repudiar veementemente a ação precipitada do Senado para acelerar a aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLP 192/2023)” (fonte: mcce.org.br).
O referido PLP n. 192/2023 flexibiliza indevidamente os prazos de inelegibilidade. Busca-se uma uniformização em oito anos para todas as hipóteses. A gravidade do ilícito praticado é solenemente desconsiderada. Ademais, a imediata eficácia das novas disposições legais aponta para a possibilidade de beneficiar aqueles apenados pela Lei da Ficha Limpa. O enfraquecimento dos instrumentos de controle voltados para garantir a regularidade do processo eleitoral é uma perspectiva claramente decorrente da eventual aprovação do PLP n. 192/2023.
Luciano Caparroz, renomado advogado especialista em direito eleitoral, em entrevista recente afirmou: “Esse é um projeto de lei que atende somente aos interesses da classe política e daqueles que têm problema com a Lei da Ficha Limpa. (…) O projeto busca desfigurar a Lei da Ficha Limpa porque busca diminui o prazo de inelegibilidade. (…) Efetivamente faltou debate. Não foram criadas comissões especiais, não houve audiências públicas. E estamos tratando de mudanças em uma lei de iniciativa popular, em que se passou mais de um ano coletando assinaturas, num enorme debate com a sociedade, aprovada na Câmara e no Senado por unanimidade, sancionada pelo presidente da República, com a constitucionalidade discutida no Supremo Tribunal Federal. Tentam agora fazer uma alteração por meio de alguns deputados e senadores que acabam buscando no corporativismo evitar o alcance da Lei da Ficha Limpa” (fonte: correiobraziliense.com.br).
Não custa lembrar que a chamada “Lei da Ficha Limpa”, editada em 2010 sob a forma da Lei Complementar n. 135, fruto de ampla mobilização popular, representou um importante avanço na moralização dos costumes políticos. Esse diploma legal definiu que condenações por crimes graves (homicídio, narcotráfico, terrorismo, estupro e extorsão mediante sequestro, por exemplo) e por improbidade administrativa implicariam na declaração de inelegibilidade por um período de oito anos após o cumprimento das sanções. O principal objetivo da “Lei da Ficha Limpa” é retirar do processo eleitoral aqueles que não apresentem um comportamento compatível com os valores mais nobres a serem concretizados no espaço político de representação popular.
A tramitação legislativa do PLP n. 192/2023 já rende notícias jornalísticas, com destaque para a formação de um amplo arco político de apoio ao retrocesso. “O Senado negociou aprovar nesta semana um projeto que diminui a pena na Lei da Ficha Limpa. A proposta é da filha de Eduardo Cunha, teve relator do PT e deve reunir votos da direita, da esquerda e do centrão” (fonte: noticias.uol.com.br).
Essa reunião de forças de praticamente todos os setores do mundo político para aprovar importantes retrocessos no conjunto de normas jurídicas voltadas para o combate à corrupção e mazelas similares não é novidade. A nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei n. 14.230, de 2021) foi aprovada a partir de um amplo acordo parlamentar. Esse inusitado arranjo envolveu a base mais fiel ao governo Bolsonaro, o Centrão e o Partido dos Trabalhadores (PT).
Infelizmente, o momento vivenciado no Brasil é de refluxo da cidadania mais consciente e consequente. Nesse contexto, os mais variados segmentos políticos (na direita, na esquerda e no centro) sentem-se muito confortáveis em adotar movimentos explícitos de enfraquecimento do arcabouço jurídico de proteção da moralidade no trato da coisa pública.
A solução para esse delicado e lamentável quadro de profunda e acelerada deterioração das práticas políticas não reside em salvadores da Pátria, mitos, heróis (com ou sem capas) ou supressão do Estado Democrático de Direito. Somente a complexa e demorada conscientização, organização e mobilização dos segmentos populares e democráticos poderá afastar dos espaços políticos aqueles que atuam das formas mais vis, buscando a realização dos interesses pessoais, partidários e socioeconômicos mais mesquinhos.