Camilla Shinoda
do Caderno Brasília/Hoje em Dia, com o Congresso em Foco
A jornalista Camilla Shinoda, que já pertenceu à equipe do Congresso em Foco, fez a entrevista abaixo com o cantor e compositor Tom Zé, um dos pais, junto com Caetano Veloso e Gilberto Gil, do Movimento Tropicalista, no final da década de 60. Ela e o Caderno Brasília/Hoje em Dia, onde ela trabalha e para o qual foi feita originalmente a entrevista, resolveram compartilhar com os leitores do Congresso em Foco a deliciosa conversa com Tom Zé. Abaixo, ele fala de política, da presidenta Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, entre outros assuntos. Ao comparar os dois, diz preferir Dilma, “que é mais séria”, a Lula, qualificado por ele como “um gaiato, um tremendo palhação”. Curta, então, Tom Zé, e bom domingo!
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Ele não possui o menor pudor em admitir: Nasci sob uma forma não aristotélica de ver o mundo. A brincadeira faz o público rir, mas ao mesmo tempo adverte que assistir a um show de Tom Zé é adentrar uma nova dimensão lógica da expressão musical. Porque música só não é o meu trabalho. O que eu faço é a canção trabalhada corporalmente no palco. Ela se desenvolve em ligeiras ilustrações, que nunca são as explicações óbvias do que a letra diz. São observações críticas que vão se sobrepondo.
Em cima do palco, tudo converge para essa nova lógica. Um senhor de 74 anos, trajando um paletó um número acima do seu com uma lâmpada bordada. Uma saia plissada por cima das calças. Os cabelos desalinhados. Com os olhos esbugalhados, Tom Zé brada cada uma das canções do repertório de seu novo trabalho, a retrospectiva Pirulito da Ciência. Conta histórias. Faz piadas. Algumas passam quase desapercebidas, diante da ironia sutil do baiano que ajudou a criar o Tropicalismo no final dos anos 60. E, de repente, ele se joga no chão. Dá cambalhotas. Segundo ele, é o tal do tai chi chuan que lhe dá todo esse preparo físico. Só cheguei saudável a essa idade porque passei a vida doente. Tive que me cuidar. Um problema na coluna, no entanto, o impede de encontrar uma posição confortável na poltrona do hotel em que concedeu essa entrevista. As voltas e reviravoltas agradaram os hóspedes que passavam pelo saguão.
A sintonia com a banda, formada por músicos que o acompanham de longa data, também foge aos padrões. Não apenas pela profusão individual de Lauro Léllis, Cristina Carneiro, Daniel Maia, Renato Léllis, Jarbas Maria e Luanda; mas pelo trabalho em grupo. Tom Zé rege sua pequena orquestra de canções e performances. E eles acompanham sem titubear. Um trabalho difícil, já que ele nunca faz um show igual ao outro. Hoje, vai ser diferente de ontem. E apesar da aparente quebra do sentido normal das coisas, tudo funciona. Tom Zé confunde para nos esclarecer.
Dando a cara a tapa, mas com a bunda virada para a Lua
Foi um bilhete premiado da loteria federal que permitiu um pouco de conforto à família de Tom Zé na cidadezinha de Irará, interior da Bahia, na década de 40, em plena Idade Média, como ele diz. Com a pequena fortuna, ele pode estudar música na Universidade de Música da Bahia, que era um verdadeiro braço da Escola de Viena, que faz a música da Europa desde o classicismo. Era uma universidade muito sofisticada. Lá, o cantor estudou com os maestros H.J. Koellreutter e Ernst Widmer. E foi graças a eles que Tom Zé parou de ouvir música. Sou um ignorante musical, não ouço nada hoje em dia. Mas tenho um bom motivo. Depois de passar oito anos estudando nessa escola, eu ouço o primeiro minuto da canção e já sei tudo o que vai acontecer. Não dá para ouvir nada depois.
Todo esse estudo, no entanto, não facilitou as coisas na hora de colocar a música em prática. Tomado pela menos-valia, que lhe acompanhava desde a infância, sua primeira tentativa de apresentação foi completamente frustrada. Como plateia, apenas uma ex-namorada, musa inspiradora de suas canções na época. Foi uma vergonha terrível. Via nos olhos da menina que ela estava pensando: ‘Coitado do rapaz, para que fui pedir para ele tocar’. E nessa hora pensei que nunca mais iria querer saber desse negócio de música. Mas no meu cérebro, enquanto eu negava a música com a parte do córtex, o hipotálamo estava dizendo assim: ‘E que tal se você deixar de fazer o mainstream? E que tal se você não fizer mais o que chamam hoje de música?’
Escrevendo por essas linhas tortas, Tom Zé criou aquilo que chama de jornalismo cantado, a sua não-música, que mais tarde se transformaria em uma das facetas do Tropicalismo, movimento artístico que também contou com a participação de Caetano Veloso e Gilberto Gil. A música falando do aqui e do agora. Isso era o Tropicalismo. E foi isso que eu fiz naquela época. Comecei a ver o que acontecia aqui e agora em Irará e falei dessas coisas de uma maneira em que o espectador perdesse a noção de que estava me vendo e percebesse o que está em volta dele.
O aqui e agora conduziram as letras de Tom Zé nessa época. Mas atualmente a sua melodia viaja para um tempo distante. Segundo ele, ao compor ele ativa o lado esquerdo do cérebro para retornar aos ritmos da natureza, que são totalmente irregulares. Eu só me inspiro no passado. Estou interessado em uma música que tenha uma barbaridade, uma memória do homem no tempo da pedra lascada. O engraçado é que quando sai o meu disco todo mundo vem dizer que é vanguardista, brinca.
O Largo dos Aflitos transbordou de aflição
A mesma ousadia que maravilhou o público no início, garantindo o primeiro lugar no IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, com a canção São São Paulo, em 1968, foi o que fez o baiano cair no ostracismo. A inovação musical de Todos os olhos (1973) não agradou à massa e Tom Zé sumiu dos grandes veículos de comunicação. Foi a classe universitária de São Paulo que me manteve como artista. Eu era contratado pelo telefone, falando pessoalmente comigo. Pegava a minha Brasília velha, levava Vicente Barreto, que me acompanhava ao violão. Um estudante levava um microfone, outro levava a caixa e outro o amplificador. Quando você ia ver, era um som trágico e eu tinha que fazer o show no grito, comenta.
O cantor já estava a um passo de voltar a Irará para trabalhar como frentista no posto de gasolina de um sobrinho, quando um novo golpe de sorte lhe aconteceu. O músico e produtor americano David Byrne acabou, por engano de um vendedor, com um exemplar do CD Estudando o Samba, de Tom Zé, nas mãos. Ao ouvi-lo, o americano não pode deixar de questionar: Que país é esse, que tem um artista assim e que tão poucos conhecem?
Byrne relançou a obra do brasileiro no exterior, com grande sucesso de crítica. Aliás, Tom Zé foi o único artista de nosso país a figurar entre os dez discos mais importantes da década de 90 nos Estados Unidos. Atualmente, a gravadora americana Luaka Bop, do próprio Byrne, lançou o box Estudos de Tom Zé, que traz a sua trilogia de estudos – Estudando o samba, Estudando o pagode e Estudando a bossa – em vinil e CD. É um negócio inimaginável de repercussão quando faço qualquer coisa lá e na Europa, fala com orgulho. Em julho próximo, o artista se apresenta no Lincoln Center, em Nova Iorque. Eu estou indo só para atender a esse carinho, porque americano paga muito mal. Eles pensam que o dólar ainda é dinheiro, mas não é.
Em um misto de justiça tardia e redenção, faz 20 anos que Tom Zé voltou à cena dos palcos oficiais. Mesmo sendo chamado de gênio mundo afora, ele nega essa condição. Eu não sou gênio. Sou japonês. Sabe japonês que entra em cursinho com aquela cara de molóide e ninguém dá nada por ele? Mas ele está lá estudando quieto e, no final do ano, passa em primeiro lugar. Em vez de chegar gaiato no palco, fazendo, virando e mexendo, eu fico em casa. Trabalho 12 horas por dia para tirar meia dúzia de compassos. Não faço um disco em um ano, como os outros fazem, faço em quatro. Mas quando o disco fica pronto, tenho certeza que sai alguma coisa que preste. Cada música são três minutos para distrair o ser humano com ideias, com coisa para ele pensar, para ele progredir, explica.
Da Idade Média para o mundo virtual
Apesar de se autodefinir como oriundo da Idade Média, Tom Zé é um dos artistas mais conectados no mundo virtual. Possui site, blog, Facebook e Twitter. Mas não uso muito a internet não, são os meninos que ficam baixando música e depois vêm me mostrar, comenta. Mesmo assim, o baiano foi capaz de perceber que as coisas mudaram bastante com a rede. Depois de um show que fiz na França, sentei em um café com um velho senhor de gravadoras amigo meu. Ficamos observando aquela horda de garotos de 19, 20 anos passando. E percebi que nenhum deles compra disco mais, comenta sem traumas.
E ainda que esse fato venha amedrontando vários artistas de sua geração, o compositor está longe de achar isso ruim. A chegada da internet é o mesmo que a invenção da imprensa. A igreja tinha o privilégio de ter a cultura sob seu domínio, quando Gutenberg, em 1492, lançou a Bíblia, a cultura se tornou do povo todo. De certo modo, acontece um pouco que a música ficou uma coisa pública. Nós não somos mais os donos absolutos da cultura do som, mas as pessoas que dispõem dele pela internet podem pagar uma pequena quantia. Tem que ser uma maneira miligramática, bem leve, mas que incentive a pessoa a pagar, explica.
Tom Zé não está acompanhando de perto a reforma da Lei dos Direitos Autorais, mas lembra que o problema da fiscalização dos órgãos que deveriam repassar o dinheiro devido aos artistas é antigo. Lembro de um tempo da Sicam, Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais. Tinha que ir receber lá no escritório, porque não tinha nem depósito bancário. Você chegava lá e estavam todos os diretores da Sicam, aquelas pessoas prosaicas, de camisa Volta ao Mundo (uma camisa de tecido sintético que era moda no final da década de 60 e início da década de 70), cheios de perfume e gastando nosso dinheiro com as prostitutas da vizinhança. Eram elas que recebiam o nosso dinheiro. Então, já que davam os dinheiros às putas, era o caso de nem se queixar, porque elas merecem. É melhor do que dar para fantasma, como acontece hoje, diz, se referindo ao recente episódio em que o ECAD pagou mais de R$ 100 mil em direitos autorais para um compositor inexistente.
Politicamente correto
Filho e sobrinho de comunistas, a política entrou cedo na vida de Tom Zé. Durante seu show em Brasília, ele relembrou o medo que sentia quando era menino e um de seus tios lhe pedia para propagandear o programa getulista O petróleo é nosso. Era um comunista medroso. O medo, no entanto, não contaminou as letras de suas canções. Sua voz já vociferou contra tudo e todos, passando dos Estados Unidos ao próprio sexo masculino. O homem tratar a mulher mal é um dos problemas mais sérios da vida agora. Resultado: o homem do ponto de vista amoroso virou um mendigo. Se isso melhorasse, a vida melhorava no mundo todo, adverte. Ele também comemora o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal. Isso é um avanço. Parabéns ao STF, porque aquieta o coração dessas pessoas que viviam como se eles fossem ilegais. E a maior dó que tenho é a pessoa ter que viver como se aquilo fosse uma coisa errada, complementa.
O título de seu novo trabalho, Pirulito da Ciência, aparentemente ingênuo e lúdico, também é uma crítica ferrenha. Eu estava falando que durante as guerras, a ciência recebe muitos proventos para trabalhar. Tudo era pra ser arma primeiro, depois pode até ter servido à humanidade. Foi assim com a bomba atômica, com a pólvora. Até o Prêmio Nobel da Paz é pago pela guerra. O Alfred Nobel ficou rico ao descobrir um jeito de transportar explosivos. Criou a dinamite, conta.
Para Tom Zé, a atividade de artista e de político exige atitudes semelhantes. Você precisa ficar o tempo todo passando as vistas na sociedade. Olhando as famílias, as pessoas, dando esperança. Vendo o que está errado, tentando administrar para dar uma curva no tempo. O tempo do político é como o tempo do músico. E esse tempo não é euclidiano. Não se estuda no curso de exatas. As humanidades fazem as exatas fazerem curvas, filosofa.
O cantor acredita que a presidenta Dilma Roussef tem capacidade para dar essa curva no tempo. Eu tenho a impressão de que foi uma felicidade continuar um programa que diminui a pobreza, como o de Lula, mas continuar com uma pessoa muito menos gaiata. Porque em termos de gaiatice, Lula era um verdadeiro palhação, enquanto essa moça é bem-posta, calma. Muito consistente de personalidade. Então, eu tenho muita esperança nesse procedimento dela, avalia.
E a gaiatice que não deve existir na vida do político, segundo Tom Zé, pode sobrar na do artista. Hoje em dia, ponho muito mais humor em tudo, porque se a sátira não tiver humor, eu me torno cruel como um torturador. Valei-me, minha Menina Jesus!
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