Edson Sardinha
Sob a desconfiança de entidades ligadas aos direitos da criança e do adolescente, o Congresso começa a elaborar a primeira lei específica do país para a adoção de filhos. A relatora, deputada Teté Bezerra (PMDB-MT), tem até a semana que vem para incorporar ou não as sugestões feitas por parlamentares e pela sociedade civil ao texto apresentado por ela na comissão especial que analisa a Lei da Adoção (projetos de lei 1756/03, 6222/05 e outros) na Câmara.
Entre outras mudanças, a deputada propõe a criação de um cadastro nacional de potenciais adotados e adotantes e a definição de prazos para que o juiz determine a perda do poder familiar sobre a criança mantida em algum tipo de abrigo. A relatora também recomenda que a adoção por estrangeiros só se dê quando não houver nenhum casal brasileiro interessado na criança (leia mais). Em 2004, eles responderam por 10% das cerca de 5 mil adoções registradas no país.
Sugestões mais polêmicas, como a adoção por casais homossexuais e a concessão de incentivos financeiros e fiscais para quem adotar, devem continuar de fora da legislação. A primeira, sugerida pela deputada Laura Carneiro (PFL-RJ), contraria o Código Civil, que não prevê a união civil de pessoas do mesmo sexo, de acordo com Teté Bezerra. A segunda, de iniciativa do deputado João Matos (PMDB-SC), pode subverter o princípio da adoção ao associá-la a um mecanismo gerador de renda, avalia a deputada.
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Existem hoje duas leis no Brasil que tratam do tema: o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8069/90) – e o Código Civil (Lei 10406/02). O substitutivo mantém os princípios básicos para a adoção, garantindo o direito aos casais com união estável, aos divorciados, aos viúvos e aos solteiros, heterossexuais ou não. Outro requisito mantido é que o adotante tenha mais de 18 anos e que haja uma diferença de pelo menos 16 anos entre ele e o adotado (leia mais).
Resistências à proposta
Apesar de ainda não estar sendo tratada como prioridade pela Casa, a proposta tem causado intensas discussões dentro da comissão especial, que já ouviu mais de uma dezena de especialistas no assunto. O substitutivo sofre basicamente dois tipos de resistência. De um lado, dos que consideram a atual legislação suficiente. De outro, dos que temem que a nova lei se limite a tratar da adoção e ignore os problemas de convivência familiar que levam a criança ao abandono.
Entre os críticos que integram esse segundo grupo, está a presidente da comissão, a deputada Maria do Rosário (PT-RS). Na avaliação dela, o substitutivo de Teté Bezerra deve ser alterado para deixar claro que a adoção é uma solução excepcional, e não uma medida a ser estimulada. "Não devemos trabalhar a lei com o objetivo da adoção, como pressupõe o substitutivo. Mas aproveitar o que já existe, estabelecer a abrigagem como último caminho e reforçar a atuação do Ministério Público e dos conselhos tutelares para estabelecer a garantia dos direitos da criança e do adolescente", defende Rosário.
Opinião semelhante tem o supervisor de Adoção da Vara da Infância do Distrito Federal, Walter Gomes de Souza. Segundo ele, mais urgente do que a aprovação do substitutivo é mudar a cultura e reforçar a atuação da Justiça no processo de adoção. "Temos de rever a nossa cultura. Temos de selecionar a família para a criança e não a criança para a família. No Brasil, infelizmente, essa ordem acaba prevalecendo. Muitas famílias querem selecionar a criança como se estivessem escolhendo fruta no mercado. O aspecto estético acaba prevalecendo. Querem crianças com bochechas róseas", critica.
Problemas ignorados
Na avaliação dele, a proposta não alcança os dois principais problemas relacionados à adoção no país: a falta de uma rede de proteção social e a incompatibilidade entre o perfil das crianças disponíveis para a adoção e o desejado pelos adotantes brasileiros. Walter lembra que há 200 crianças e adolescentes à espera de adoção no Distrito Federal. Dessas, 31 fazem parte de grupos de irmãos, de dois a seis membros. "Não temos famílias cadastradas interessadas em irmãos. Cerca de 80% querem criança de até 1,5 ano. Não há compatibilização porque o perfil das crianças desejadas difere das crianças habilitadas para adoção. São dois cadastros que não se cruzam", diz ele.
Segundo o superintendente, a nova lei vai tornar apenas mais ágil o processo de homologação das adoções informais – a chamada guarda fática – que não são consideradas as mais adequadas pelas autoridades judiciais. "Isso ocorre quando a criança já está sob proteção da família adotante, com a autorização da mãe biológica, e a Justiça não tem praticamente mais nada a fazer." Em 2005, foram registradas 274 adoções no Distrito Federal. Somente 31 casos foram de crianças previamente cadastradas que foram parar com famílias também previamente cadastradas. Na maioria dos casos, 173 deles, a adoção começou informalmente e à Justiça coube apenas o papel de homologar vínculos afetivos já existentes.
A falta de inscrição, segundo Walter, deixa mães pobres na condição de presas fáceis para o assédio dos interessados na adoção. "É preciso que o Estado esgote todas as possibilidades para que a criança seja mantida com a família. Em muitos casos, ela pode ficar com um tio ou um avô. Será que não está faltando um olhar mais atento do Estado? Muitas vezes a mãe é uma pessoa excluída que vai, na prática, reproduzir essa exclusão com o filho."
Desarranjo familiar
Aproximadamente 250 mil crianças e adolescentes vivem hoje em abrigos espalhados pelo país. De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), 86% dos moradores desses estabelecimentos têm família e 24% estão lá por motivo de pobreza. A maioria dessas crianças (61%) tem entre 7 e 15 anos. Nessa faixa etária, as chances de adoção são pequenas. Para a deputada Maria do Rosário, o projeto de lei deve ser alterado para estimular uma política de assistência social para garantir o retorno dessas crianças às suas famílias biológicas. "O ponto principal deve ser a prevenção do abandono. A adoção só deve ser trabalhada quando essa possibilidade fracassar. E não inverter o processo", diz a presidente da comissão especial.
Menos tempo em abrigo
O substitutivo de Teté Bezerra limita o prazo para a permanência da criança e do adolescente em abrigos. Hoje, eles podem ficar lá até atingir a maioridade. Pela proposta em discussão, esse período não poderá exceder a um terço do tempo que falta para a criança completar os 18 anos – ou seja, por no máximo seis anos. A idéia, segundo a relatora, é aumentar a responsabilidade do Estado na tarefa de encontrar um lar para a criança.
Outro ponto polêmico apontado por entidades envolvidas na discussão da Lei da Adoção são os prazos estipulados para a destituição do poder das famílias, considerados muito curtos. De acordo com o projeto, o Ministério Público terá o prazo máximo de 30 dias para ajuizar a ação. Caberá à Justiça de primeiro grau decidir, em até 120 dias, se a família biológica deve ou não continuar com legalmente responsável pela criança ou se o nome dela poderá ser encaminhado para a lista de potenciais adotados.
"Por um lado pode haver atropelos, é verdade. Mas pode ser uma saída para muitas crianças que ficam anos esperando a Justiça se decidir. Em Porto Alegre, por exemplo, elas ficam em média 3,5 anos em abrigos, aguardando a definição do juiz se elas serão adotadas ou voltarão para casa", pondera a deputada Maria do Rosário.
Menos chance para estrangeiros
A adoção internacional, isto é, a realizada por famílias estrangeiras poderá ser feita apenas quando forem esgotadas todas as possibilidades de inclusão do menor em famílias brasileiras, segundo o substitutivo. Pelo texto, a adoção por estrangeiro não acontecerá sem que os pais adotantes sejam ouvidos pela autoridade judiciária brasileira. Além disso, deverá ser cumprido um estágio de convivência entre o menor e a família adotante, em prazo a ser determinado pelo juiz. Esse período, que na atual legislação é fixado em pelo menos 15 dias, foi ampliado pela relatora para no mínimo 30 dias.
Segundo Walter Gomes, essa medida pode coibir abusos, já que muitas comarcas dão preferência a estrangeiros na hora de decidir com quem a criança deve ficar. Mas, por outro lado, pode reduzir as chances de adoção por menores que não se encaixam no perfil preferido pelos brasileiros. "As famílias estrangeiras estabelecem um perfil até elogiável. Elas têm interesse em crianças mais velhas e adolescentes, não fazem referências à cor da pele, procuram muitas vezes grupos de irmãos e até mesmo crianças com doenças incuráveis. Os casais brasileiros, em média, querem só uma criança com no máximo um ano e perfil saudável."
Durante quatro dias, o Congresso em Foco procurou sem sucesso a relatora do projeto da Lei da Adoção para comentar as críticas ao texto. A deputada Teté Bezerra não retornou os contatos feitos pela reportagem até o fechamento desta edição.
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