A ideia em um segundo
Bolsonaro mira 2022. Sua escolha foi feita: abandonou quaisquer promessas de campanha impopulares e avança com auxílio emergencial e versões e realidades paralelas para todos os problemas do Brasil. A dissociação entre fato e discurso chega ao paroxismo na figura do mandante maior do Brasil. A dúvida é quanto ela subsistirá à pandemia e à crise econômica.
Bolsonaro tenta vender para a população uma imagem que não corresponde à realidade de seu governo [fotografo] J. Camargo/Pixabay[/fotografo]
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Eleição “normal”
Prevê-se para 2022 uma eleição mais “normal” do que o pleito anterior. Recapitulando, em 2018 o Brasil ainda votou no embalo da Lava Jato e da sede de moralização dela decorrente, sob uma crise econômica profunda, energizado por um ódio vivo ao PT e sem candidato à reeleição. O clima era de refundação do Brasil, ou além, de sua redenção. Foi a eleição do “tudo contra isso daí”. Como resultado, Bolsonaro se elegeu de forma totalmente atípica: sem tempo de TV, sem alianças formais significativas, sem financiamento e ausente da campanha após a facada desferida por Adélio Bispo.
Eleição atípica: presidenciáveis participam de debate na TV Gazeta dois dias após Bolsonaro ter recebido facada na barriga
As eleições de 2022 devem trazer de volta, ao menos parcialmente, o cenário mais usual. Nesses casos, o eleitor se preocupa com suas necessidades mais imediatas, como emprego, renda, prestação de serviços públicos e, na presença de um candidato à reeleição, avalia se o incumbente fez um bom trabalho e merece voltar ao posto. Assim o Bolsonaro antissistema, antes vitorioso, não poderá se repetir. Agora ele é sistema, e esse é seu desafio. Ainda que, por vezes, ele queira se eximir de suas responsabilidades e jogar os fracassos ou a falta de ação de seu governo nas costas dos demais poderes.
A máscara do presidente
A estratégia do presidente da República, incessantemente utilizada desde a posse, consiste em dissociar discurso e realidade, mostrando-se próximo dos sucessos e distante dos fracassos. O expediente é usual, pois campanhas vendem sonhos. Contudo, utilizando um termo médico para um país hoje profundamente adoecido, a estratégia alcançará seu paroxismo, definido como “o maior grau de intensidade de uma doença”.
O governo Bolsonaro hoje conta com 30% de aprovação popular (seu percentual de ótimo e bom em diversas pesquisas de opinião). Segundo avaliações técnicas, somando-se a esse patamar as avaliações regulares, tem-se um presidente com plenas chances de reeleição. Contudo, essas condições são regras gerais e precisam se manter até a campanha eleitoral.
Volta de Lula à corrida eleitoral aumenta pressão sobre Bolsonaro [fotografo]Ricardo Stuckert[/fotografo]
A volta de Lula ao jogo afasta Bolsonaro, ainda mais, da agenda liberal e o impele a adotar um modelo mais gastador. Mas, diante das dificuldades de caixa, aprofundadas pela pandemia, a tendência é que os acenos à população de baixa renda sejam mais retóricos do que práticos. O descumprimento dessas promessas, no entanto, tende a ser desmascarado mais facilmente pela população com a falta de dinheiro no bolso e de comida no prato.
Independentemente da vitória de Lula na Justiça, Bolsonaro demonstra duas fontes potenciais de fraqueza. Por um lado, a possibilidade de queda de apoio derivada da crise econômica e de um nefasto e previsível recrudescimento da pandemia no futuro imediato.
Manifestação, em São Paulo, pelo pagamento do auxílio emergencial até o fim da pandemia. Governo promete apenas mais quatro meses de benefício [fotografo]Elineudo Moura[/fotografo]
De toda forma, para conseguir votos além do círculo de evangélicos fiéis aos seus projetos e da direita radical alinhada aos seus projetos armamentistas, Bolsonaro precisará contornar as críticas ao mau desempenho econômico, à crise humanitária da pandemia, à inação do governo na pauta econômica e ao desmonte de políticas de meio ambiente, direitos humanos, relações exteriores. Ele precisa convencer que governou bem.
O inferno são os outros
Sua intervenção na Petrobras sedimentou a opção de Bolsonaro em romper com “o andar de cima”, como diz Elio Gaspari. Seu foco, a 20 meses da eleição, é único: adular o povo. Para isso, precisará distribuir a culpa a terceiros e se agarrar aos feitos que adoçam sua popularidade.
Quanto à economia, o presidente culpa governadores e prefeitos. Segundo sua tese, as medidas de distanciamento social, a restrição ao comércio e serviços e o lockdown causam todos os problemas econômicos que vivemos. Para o cidadão comum, preso entre as necessidades do dia a dia e o orçamento minguando, o discurso cola. Ficam de lado, obviamente, os elementos menos populares, importantes para a elite mais informada, que são a desastrosa gestão macroeconômica e o fiasco das reformas e privatizações não realizadas. Mas Bolsonaro mira o povo, ponto-final.
Quanto à pandemia, ele acena incessantemente com remédios milagrosos. De novo, avulta sua leitura do Brasil profundo. A esperança nos tônicos e unguentos faz parte da história da humanidade e, num momento de aflição e desespero, encaixa-se bem nas expectativas de muitos. Ao mandar uma comitiva a Israel em busca de um novo elixir da longa vida, o presidente martela mais uma vez na mesma tese. Aqui também ficam de lado os inúmeros desmentidos da ciência séria e o fracasso do governo federal na política da vacina. Fora a esperança na agulhada salvadora, que o Brasil aprendeu a valorizar por décadas de boas campanhas de vacinação, a estratégia de Bolsonaro mira e acerta o alvo.
Bolsonaro atribui aos governadores que restringem comércio por causa da pandemia números negativos da economia [fotografo]Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr[/fotografo]
Bolsonaro vai, assim, construindo-se como um bólido populista em direção a 2022. Procura cultivar o povo, seu esteio para uma próxima eleição, com versões da realidade e o auxílio emergencial. Não basta mais dizer que fará diferente, que redimirá o Brasil; precisa convencer que governou bem. O quanto ele conseguirá manter uma versão da realidade na qual ele é pai do bom e irresponsável pelo mau dará a medida de seu sucesso. Se demagogia precisa de definição, aí está.
No caminho, abandona as esperanças da elite econômica, destroça as expectativas moralistas dos lavajatistas, afasta governadores, prefeitos e outras autoridades, envergonha o Brasil internacionalmente, mas avança em direção à meta.
Por tudo, essa carreira nos parece uma corrida contra o tempo, como se a fachada elaborada e nutrida pelo presidente fosse despedaçar-se a qualquer momento. A dúvida apenas reside se isso acontecerá a tempo de acabar com suas chances de reeleição ou depois.