Denílson Lopes *
Como falar dos anos 90? Quando eles começaram? Quando eles acabaram? Começaram com as esperanças de uma Europa unificada e democrática após a queda do muro de Berlim e terminaram com a queda do World Trade Center e a crescente militarização do império americano? Sai o confronto Leste/Oeste, capitalismo/socialismo real e reafirmam-se as tensões entre Oriente e Ocidente? Davos está tão distante assim de Porto Alegre? Seriam esses os marcos mais importantes? E para o cinema?
Esta coletânea de artigos sobre os filmes da última década do milênio passado se propõe a fazer um mapeamento a partir da diversidade de sua produção e de abordagens diferentes. Os críticos, quase todos vinculados à universidade brasileira, tiveram a liberdade inicial de escolher um filme que lhe fosse mais caro ou que lhe interessasse mais. Depois, alguns ajustes foram feitos. Houve uma preferência por cineastas fortes, autores, para usar uma palavra antiga, em detrimento da pouca presença de filmes que marcaram a década por suas grandes bilheterias. Peter Greenaway e David Cronemberg ficaram entre os cineastas mais populares entre os autores. Como não queria ter mais de um artigo sobre um mesmo diretor ou filme, conversei com os autores para que fizessem outras escolhas. Alguns ensaios previstos sobre filmes que julgava importantes não foram concluídos. Por fim, destacamos, a forte presença do cinema brasileiro, por iniciativa dos próprios críticos.
Se não há mais cinemas novos, vanguardas, movimentos fortes, não se trata de decadência ou homogeneização. As opções vão desde bons trabalhos de veteranos a cineastas que surgem nessa década. Não se pretende fazer um trabalho completo, mas um primeiro panorama, uma primeira aproximação para posteriores aprofundamentos e debates. Esses filmes estrangeiros e brasileiros sintetizam nossas angústias e esperanças. Aceitamos olhar nos olhos dos filmes que estamos fazendo, sem nostalgia nem deslumbramento. Esse é o convite.
Ao contrário daqueles que apostaram na morte do cinema, no final dos anos 70, este se fez apesar das dificuldades de um processo de hegemonia norte-americana e de um saudosismo dos ideários do cinema moderno, das viúvas de Glauber e Godard, que povoam mais a crítica do que o mundo dos cineastas, diga-se de passagem. O cinema reconfigurou sua prática a partir de uma convergência tecnológica, apontando para um futuro da imagem audiovisual, híbrida e impura, para além dos limites estreitos de uma linguagem.
Sutilmente, o quadro foi se transformando, sem grandes manifestos, estardalhaços. Há sempre uma dificuldade de se falar do que é próximo. Erros de avaliação são mais fáceis de ser cometidos pela proximidade com o que se estuda. Contudo, o risco e o ganho podem ser uma aventura, uma aposta diante da realidade, um testemunho do que fizemos e fazemos. Esses não foram os melhores nem os piores anos, apenas o que vivemos e sentimos.
Talvez o cinema esteja hoje no lugar em que a pintura e a literatura estavam no fim de século XIX, forçadas a se transformarem e, ao mesmo tempo, sentindo o peso de uma história. Diante da fragmentação das imagens televisivas, e mais recentemente das imagens virtuais, o cinema estaria na encruzilhada de resgatar a lentidão (ver DELEUZE, G.: 1992, 126), a possibilidade de contemplação; aderir à rapidez, ao bombardeio informacional ou buscar formas intermediárias entre as duas situações, como veremos em vários filmes aqui estudados.
PublicidadeDiferente de uma estratégia marcante dos anos 80, praticada até hoje, em que o cinema se viu acoplado a um desejo de revisitação do cinema clássico sob o signo do pastiche, do fascínio pelo cinema de gênero; nos anos 90, firma-se uma outra estratégia que ao invés de um cinema do cinema, cinema publicitário, cinema do simulacro, marcado pelo artificialismo, seria um desejo de resgatar o cotidiano, pessoas e estórias simples, com imagens despojadas, presente em "sexo, mentiras e videotapes" de Steven Soderbegh, filme paradigmático dessa guinada, como nos lembra Nelson Brissac Peixoto (1991: 326), filme que encerrava a década de 80 e a centralidade de um "voyeurismo socializado" e cinéfilo (Labaki, 1977: 9). Talvez seja algo que pudesse aparecer como um diferencial do cinema dessa década em que o cotidiano se viu cada vez mais marcado pelas invasões midiáticas, violências generalizadas, conflitos decorrentes de novos sujeitos sociais se proliferando.
Cinema pós-vanguarda, pós-moderno, maneirista, neo-barroco. Cada termo implica um posicionamento. Fico com o termo vago – cinema contemporâneo – mas talvez necessário para buscarmos a singularidade deste momento para além do cinema clássico, da primeira metade do século XX, e do cinema moderno, que se construiu entre o neo-realismo, o underground norte-americano, a nouvelle vaugue e os cinemas novos em diversos países, nos anos 60.
Ao invés de comentários dos textos dos colegas que contribuíram, a quem agradeço a generosidade e o interesse por este projeto, fica aqui esta provocação, que não representa necessariamente a opinião dos autores, mas que veio como uma reflexão diante do que li. Nem revolução, nem nostalgia, sutis formas de resistência emergem neste início de milênio. Quem disse que conciliação com o mercado e com o público implica necessariamente conformismo? Estejamos à altura do que está e do que virá.
Referências:
DELEUZE, Gilles, 1992. "Carta a Serge Daney: Otimismo, Pessimismo e Viagem". In: Conversações, Rio de Janeiro: 34.
LABAKI, Amir, 1991. "Introdução". In: LABAKI, Amir (org.). O Cinema dos Anos 90. São Paulo: Brasiliense.
PEIXOTO, Nelson Brissac, 1991. "sexo, mentiras e videotapes". In: LABAKI, Amir (org.). Op. cit.
* Professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, pesquisador do CNPq, autor de Nós os Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (RJ, 7Letras, 1999), O Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (RJ, Aeroplano, 2002) e vários artigos sobre arte e cultura contemporâneas.
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