A nova Lei Seca entrou em vigor no último dia 21 de dezembro. Apesar de bem-intencionada, já nos cinco primeiros dias de vigência (período do Natal de 2012), entrou em colisão frontal com a realidade: nas rodovias federais ocorreram 222 mortes, 38% mais que em 2011 (O Globo, de 27.12.12, p. 7). Como se vê, a nova Lei Seca, apesar das promessas e esperanças de que poderia solucionar o problema, tem tudo para dar em nada, em termos de diminuição de acidentes e mortes no trânsito.
E se não der em nada não será mero acidente. É mais do que previsível que a nova Lei Seca vá repetir o que aconteceu com as leis anteriores na área, porque não estamos fazendo as coisas certas. Ou seja, em matéria de trânsito, estamos na contramão, porque não fazemos (ou não fazemos bem) o que deveria ser feito: educação, engenharia (das estradas, ruas e carros), fiscalização intensa e contínua, primeiros socorros e punição rápida e eficaz (respeitando-se o devido processo legal). Nossa resposta consiste sempre em novas leis mais duras, maior punição, maior multa, mais facilidade para as prisões etc.
Com isso, o legislador e o governo se iludem e, ao mesmo tempo, enganam a população, que é uma vítima que vive seduzida por mais vitimização (em razão de um processo pré-histórico chamado, por Nietzsche, de mnemotécnica da vingança). O tom festivo, comemorativo, do povo e da mídia, com as novas leis penais mais duras, deixa o governo na cômoda posição de deixar de tomar as medidas acertadas para enfrentar com eficácia o problema. Pena é que enquanto alguns brindam a chegada de novas leis mais duras, os mortos acabam ficando sem palavras (Zaffaroni, A palavra dos mortos).
Essa política da enganação legislativa, na área da segurança viária, começou sistematicamente com o Código de Trânsito Brasileiro em 1997, quando o Datasus já registrava 35.620 mortes no trânsito. Quando esta lei parou de surtir o efeito desejado, modificou-se o CTB em 2006 e aí já contávamos com 36.367 mortes. Não tendo funcionado bem essa nova lei, veio a Lei Seca de 2008, quando alcançamos o patamar de 38.273 mortes.
De 2009 para 2010, logo depois de passada a ressaca da Lei Seca de 2008, aconteceu o maior aumento de óbitos no trânsito de toda nossa história: 13,96%. Aumento notável na frota de veículos, sobretudo de motocicletas (hoje com 75 milhões no total), frouxidão na fiscalização, morosidade na punição e erros crassos da lei, tal como a exigência de comprovação de 6 decigramas de álcool por litro de sangue: foi dessa maneira que chegamos em 2010 a 42.844 mortes (dados do Datasus).
O apoio popular e midiático às medidas legislativas severas, duras, acaba deixando o legislador e o governo inebriados, cheios de esperanças e de expectativas (muitas vezes até sinceras). O eminente deputado Edinho Araújo (relator do projeto da nova lei na Câmara dos deputados) disse: “A boa notícia de fim de ano é que a nova Lei Seca, sancionada pela presidenta Dilma, é válida já durante as festas de fim de ano e no Carnaval” (Folha de S. Paulo, de 29.12.12, p. A3). A má notícia é que as mortes, nas rodovias federais, aumentaram 38% no período do Natal.
As prisões, depois da lei nova, explodiram. Mas as mortes não diminuíram. No ano de 2011 aconteceram 8.600 óbitos nas rodovias federais. Isso levou o governo a lançar, em maio daquele ano, o Pacto Nacional pela Redução de Acidentes (Parada). Mesmo assim, as mortes não pararam. Então começaram a discutir a nova Lei Seca. Enquanto discutiam a lei nova, os dados levantados pela Polícia Rodoviária Federal diziam que o número de acidentes causados por embriaguez ao volante aumentou em 50% (de 2011 para 2012 – O Globo, de 26.12.12., p. 19).
Nosso Instituto Avante Brasil está projetando, para 2012, 46 mil mortes no trânsito, porque estamos crescendo 4% ao ano, desde 2000. Somente no mês da Copa do Mundo, morrerão de 6 a 7 mil pessoas no trânsito (veja nossos levantamentos no institutoavantebrasil.com.br).
A sede de vingança, que é herança da pré-história (diz Nietzsche), obscurece nossa razão, transformando o castigo em pura emoção (como dizia Durkheim), que deixa todos (população e mídia) cegos pela paixão. Adoramos a festa da vingança (Nietzsche), ainda que seja irracional e emotiva. Mas com isso ficam para trás as coisas certas que deveríamos fazer para enfrentar nossos graves problemas de convivência. Esquecemos que “o homem que é mestre de suas paixões é escravo da razão” (Cyril Connolly, inglês, crítico).
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