Tavares Dias
Giovanni é um bom amigo paulistano que não se chama Giovanni mas que aqui vai ser conhecido assim, para resguardar sua imagem.
É italiano de quatro costados, embora tenha nascido no Brasil. Já tem mais de 60 anos. Sujeito empreendedor, bem-sucedido, bonachão.
Giovanni é tão irreverente que costuma dizer, diante de pessoas que o conhecem pouco, em almoços ou jantares da colônia italiana, que seu prato preferido é a feijoada, o que tem lhe garantido alguns pequenos problemas. Já ouviu muitos insultos, que vão de porco a herege.
-Ma quê, Belo? Feijoada?
Seu filme preferido é “Parente é serpente” (Parenti Serpenti, Itália, 1993, direção de Mario Monicelli, com Tommaso Bianco e Renato Ceccheto). A obra talvez seja a mais saborosa crítica que o estilo italiano de viver já mereceu do cinema. Nas palavras do Giovanni, ali estão retratadas “as intrigas, o matriarcado, o desespero pelo dinheiro, o espírito tribal, a avareza, a passionalidade, os édipos exacerbados.”
Meu amigo não tem meias-palavras.
-O deus do italiano é o dinheiro. O resto é parolagem de vendedor.
Assim é o Giovanni.
Mas eu já vinha sentindo, fazia tempo, que ele anda meio pra baixo. E finalmente descobri a razão: é que uma tese dele, contada e recontada por entre gargalhadas, há mais de 20 anos, em encontros de família e amigos, tutti italiani, começa a desmoronar. E o Giovanni, que perde a polenta mas não perde a piada, está vendo sua carreira de antropólogo de cantina ser ameaçada pela acelerada mudança de costumes que ocorre no mundo.
Eu só não conhecia ainda o assunto porque, segundo o próprio Giovanni, histórias que fazem humor com italianos só são admitidas na famiglia se contadas por italianos e para outros italianos. Se tiver um único “estrangeiro” na roda e o cara rir, o pau quebra. Ele sustenta que só por isso é que “Parente é serpente” é esse sucesso todo: porque foi feito por um italiano (o cineasta Mario Monicelli, conhecido como o rei da comédia italiana, foi também roteirista e diretor de “O incrível exército de Brancaleone”, dentre outros sucessos).
Mas então, por conta da nossa velha amizade e também de suas preocupações com o desmoronar de sua tese, o Giovanni resolveu desabafar comigo um dia desses, porque sabe que também tenho ancestrais como os dele, embora mais longínquos. Revelou-me então suas preocupações com o jeito italiano de ser, que ele preza acima de tudo, ninguém se engane.
O Giovanni é um homem culto. Então pergunto se sua tese tem fundamentação teórica. Sua gesticulação típica me interrompe com impaciência de anarquista: quem se importa com isso?
Vamos então ouvir o meu amigo:
“Esse negócio de italiano não conseguir viver sem uma mulher pra mandar nele tem raízes históricas profundas. Com a ascensão do Império Romano, as legiões viajavam para as mais longínquas regiões do mundo então conhecido, deixando as famílias passando todo tipo de privações.
“Acontece que, quando não estavam curtindo uma boa guerra, os bravíssimos romanos adoravam colecionar rapazinhos. Dava status. Relações com mulheres eram essencialmente destinadas à procriação.
“Geração após geração, aquilo foi cristalizando mágoa e vergonha na Mama e na Nona. Então, quando o império começou a ruir e as legiões retornaram a Roma, estropiadas, humilhadas, despojadas de sua antiga arrogância, as mulheres já eram um carrancudo exército de longos vestidos pretos, véus na cabeça e terços no pescoço, e armado de rolos de macarrão. Como ainda não havia esse negócio de politicamente correto, a dureza do discurso das esposas refletiu o tamanho da mágoa:
“Agora vocês vão ver, suas titias velhas, o que nós guardamos pra vocês. Já pra casa.”
“Aí começou o calvário do homem italiano. Ele tem uma tradição de ser valente, brigão, desafiador, vencedor, mas só até a Mama dar um grito. Aí o mais valente mafioso vira um poodlezinho.
“O que restou aos velhos romanos? Fundar redutos vedados à presença feminina. Assim nasceram a Cosa Nostra, o Vaticano, a Sacra Corona e outras organizações menos conhecidas, criadas no regime da omertá, a lei do silêncio, sob a descarada alegação de que mulher não consegue guardar segredo, de que na primeira TPM entrega tudo, e por aí.”
Garante o Giovanni que tudo vinha caminhando bem, há séculos. A cultura italiana a disseminar pelo mundo o seu melhor, como as técnicas agrícolas, culinária, a literatura, as artes plásticas, a música, a filosofia, o teatro, a ópera, o cinema, tanto conhecimento que tem influenciado positivamente o comportamento mundial. O homem italiano seguia conformado com seu fado e sua cruz, tomando seu vinho, cantando alegres canções, contando seu dinheirinho, dançando a tarantella, fingindo obediência e (em raríssimos casos, assegura o Giovanni) pulando a cerca.
E então me informa o deprimido Giovanni, para minha surpresa, que recentemente surgiu na Itália uma organização mafiosa feminina, o que ameaça pôr fim à hegemonia masculina no setor. Embora se deva lamentar qualquer aumento da criminalidade, a novidade faz sentido, é claro, considerada a nova atitude das mulheres diante do mundo. Mas o meu amigo se desespera:
–Mama mia. E agora?
*Tavares Dias, 55 anos, é jornalista, escritor, compositor e professor. Mineiro, trabalhou em diversas redações do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Espírito Santo. É o parceiro musical mais freqüente do cantor e compositor mineiro Zé Geraldo. Em maio, lançará seu quinto livro, No reino de Pedro Félix (contos).
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