Antonio Vital*
Quem assistiu ao filme "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, ou à minissérie "Quinto dos infernos", da Rede Globo, deve se lembrar da figura caricata do rei Dom João VI, apresentado como glutão, indeciso, obeso, medroso e dominado pela mulher, Carlota Joaquina.
Pois quem acreditou nessa versão pode se preparar para uma grande mudança do personagem. O D. João que está sendo apresentado nas comemorações dos 200 anos da chegada da família real ao Brasil tem as mesmas características físicas do anterior, mas uma revisão histórica em curso revela uma faceta pouco conhecida do pai de D. Pedro I: o de um estadista tolerante, com visão estratégica suficiente para iludir Napoleão Bonaparte, manter seu trono enquanto praticamente todos os monarcas europeus perdiam os seus e, de quebra, lançar as bases para a transformação do Brasil em país. Sem contar que voltou para Portugal como rei e deixou o filho para fundar outra dinastia aqui.
Os 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, episódio fundamental da nossa história, foram o tema do programa Expressão Nacional, da TV Câmara, na noite de terça-feira (04). Participaram do debate Dom Bertrand de Orleans e Bragança, descendente direto de D. João VI; Francisco Seixas da Costa, embaixador de Portugal no Brasil; e os deputados Chico Alencar (PSOL-RJ), que é historiador, e Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), descendente de José Bonifácio de Andrada e Silva, o "Patriarca da Independência".
"A vinda para o Brasil foi uma saída pensada, uma estratégia inteligente", disse D. Bertrand, que se auto-intitula "princípe imperial do Brasil". Ele é o segundo na linha sucessória da dinastia dos Bragança, logo depois de seu irmão D. Luiz, o chefe da família imperial brasileira. Eles são bisnetos da Princesa Isabel e trinetos de Dom Pedro II, que por sua vez era neto de D. João.
"Os historiadores do século XIX puniram D. João", admitiu o embaixador de Portugal. Francisco Seixas da Costa ocupou a cadeira ao lado da de D. Bertrand, mas fez questão de deixar claro o fato de ser republicano. Ele falou das conseqüências da vinda da família real para o povo português. "A vinda da corte para o Brasil provocou a massa crítica que resultou no movimento pela constitucionalidade em Portugal", disse.
A família real deixou Lisboa em 29 de novembro de 1807, quando as tropas de Napoleão estavam nas cercanias da cidade. Os portugueses se sentiram abandonados e só a proteção de homens armados evitou uma revolta popular. A bordo dos navios, escoltados pela Marinha inglesa, um número que varia de 4 mil a 15 mil pessoas segundo o historiador. Eles deixaram para trás a ameaça de deposição feita por Napoleão Bonaparte em direção a uma colônia que nunca mais seria a mesma.
PublicidadeFoi a primeira vez que um soberano europeu pisava nas terras descobertas além-mar. Ao chegar aqui, o futuro rei de Portugal plantou a semente da independência do Brasil – além de abrir os portos, fundar uma escola de Medicina, a Biblioteca Real (Biblioteca Nacional) e a Real Academia de Belas Artes (Museu Nacional de Belas Artes). Sem contar o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, inde foram plantadas as primeiras mudas de uma planta que iria revolucionar a economia brasileira, o café.
Em seu livro recém-lançado, "1808", o jornalista Laurentino Gomes defende a tese de que, caso D. João VI não tivesse fugido de Portugal para o Rio de Janeiro, o Brasil não existiria como é hoje. "Provavelmente teria se pulverizado em pequenas repúblicas, como aconteceu com a América espanhola. Seria uma constelação de países irrelevantes na América do Sul, cuja liderança caberia à Argentina", arrisca.
A cidade que primeiro viu a família real foi Salvador, em janeiro. Lá, D. João abriu os portos da até então fechadíssima colônia. Isso beneficiou em um primeiro momento a Inglaterra, elevada à categoria de parceira comercial prioritária em detrimento de Portugal, que ficou literalmente a ver navios. A chegada ao Rio ocorreu em março de 1808. Na cidade de 60 mil habitantes, 40 mil eram escravos. Na época, navios despejavam entre 18 mil e 22 mil escravos por ano no mercado do Valongo, no Rio. Chico Alencar considerou a escravidão uma chaga que atrasou até mesmo o desenvolvimento econômico do país.
Mas, no início do século XIX, a escravidão era o motor da economia, ainda basicamente extrativista. Tanto que o Palácio da Quinta da Boa Vista, onde D. João passou a morar, foi um presente do traficante de escravos Elias Antônio Lopes. A ajudinha, para Laurentino Gomes, tinha razão de ser em função dos altos custos de manutenção de uma corte cara e perdulária. Em um relatório escrito em 1817, o embaixador alemão von Flemming afirmava que "nenhuma outra corte tem tantos empregados, guarda-roupas, assistentes, servos uniformizados e cocheiros".
D. Bertrand não concorda com a afirmação. "A Corte não tinha cabide de emprego como a República", disse, ao negar o excesso de gastos. "Mas de onde vinham os recursos?", perguntou Chico Alencar. De acordo com o livro "1808", vinham dos comerciantes agraciados com favores reais e do recém-fundado Banco do Brasil, que acabou praticamente falido de tanto emitir moeda sem lastro.
"O grande legado da vinda da corte portuguesa para o Brasil é a democracia cristã", concluiu Bonifácio de Andrada. A história tem múltiplas interpretações. Mas, para D. João, está começando a ser levada a sério avaliação já sugerida pelo próprio Napoleão Bonaparte em suas memórias: "Foi o único que me enganou".
O programa sobre os 200 anos da chegada da família real será reprisado sexta-feira (7), às 4h e 11h30; sábado (8), às 12h; domingo (9), às 9h30; e segunda (10), às 6h e 10h.
Próximo programa
Na próxima terça-feira (11), ao vivo, às 22h, o Expressão Nacional será sobre a situação da mulher no sistema prisional brasileiro. Vão participar do debate a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; o padre Gunther Alois, coordenador nacional da Pastoral Carcerária (CNBB); o deputado Neucimar Fraga (PR-ES), presidente da CPI do Sistema Carcerário; e a deputada Cida Diogo (PT-RJ), sub-relatora da CPI para os casos das mulheres na prisão.
Os telespectadores podem enviar perguntas ou sugestões pelo e-mail expressaonacional@camara.gov.br ou então pelo telefone gratuito 0800 619 619. Se estiver havendo sessão do Plenário da Câmara, o programa é transmitido ao vivo na internet (www.camara.gov.br/tv).
* Antonio Vital é apresentador do programa Expressão Nacional, da TV Câmara.
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