João Vieira*
Constitui fato estranhável a dominância, mesmo em boas rodas, do sentimento de impossibilidade de uma tipologia limpa e digna de poder; a descrença na viabilidade do mando polarizado e consistente, coerente, voltado à eficácia sem menosprezo pelo ideal da prestação ou senso do serviço! Poder efetivo, exercido sem a corrupção por espúrios interesses ou o descaminho da arbitrariedade, não negligente, e tendo por escopo (fundamental) o bem comum, no tanto que altruísta! Poder, reafirme-se, regulado pela noção de serviço e ideal da prestação.
Sejam aqui tomadas em conta todas as formas, graus ou abrangência de poder, desde o inconteste "pátrio poder", àquel’outro não exatamente natural que advém de expressa vontade social de legítimo fundamento. E o poder pode, sim, ser exercido consistentemente de forma polarizada e dura, eficaz, com dignidade! Ao contrário, aliás, do que diz um Frei Betto, cronista-pensador, religioso, taxativo em afirmar que todo poder induz à corrupção. Certo estava o revolucionário Guevara, que, formado médico, valorizou, sobremaneira, instituto do poder, havendo cunhado a célebre divisa: "Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás".
A questão do poder correto, ou seja, exercido de forma digna, ética e eficaz, não só se constitui numa possibilidade (e necessidade), como realidade recorrente – ainda que pontual – em ocasiões que vão das eras arcaicas de convívio tribal, primitivo, à Antiguidade Clássica materializada na história.
Assim, documentos registram o caso exemplar de Cincinatti, estadista chamado a exercer a "ditadura" em Roma para "pôr ordem na casa" e que, realizado o intento, recolhe-se ao seu arado para as lides agrícolas! Igualmente, também, com certos patriarcas e líderes comunitários ou caciques tribais como no caso do célebre chefe nambikwara Katunkolosu, que guiou seu povo para o convívio pacífico (mas autônomo) com a frente de colonos. E, obviamente, políticos do quilate de um Juscelino Kubitschek de Oliveira, que anistiou militares então rebelados contra seu governo, entre outras medidas de alcance, verdadeiramente exemplares, de sua gestão realizadora! Note-se que Kubitschek teve força moral suficiente para zerar a repressão em plena vigência da "Guerra Fria" do proscrito PCB, tendo franqueado audiência e trânsito livre ao líder radical Carlos Prestes, acolhido amistosamente em visita à grande concentração operária que era a metalúrgica de Volta Redonda (posso, aliás, dizer disso com propriedade, pois do mencionado episódio, ou acontecimento, fui testemunha ocular).
A lista é longa, e incontáveis – felizmente – são as categorias de dirigentes vocacionados, verdadeiramente aptos a exercer o dom ou missão de timoneiro; de guia ou condutor limpo e ético, produtivo, eficaz, de maneira a honrar, enobrecer tanto o seu seguimento de expressão funcional quanto a coletividade em seu todo – senão mesmo a espécie humana! Não por acaso e bem sintomático é o fato de estar consignado na Bíblia que "todo poder vem de Deus" (Rom. XIII, 1).
Numa ilustração grandiloqüente, seja trazido à lembrança o soberbo feito do estadista bretão Winston Churchil, que, na hora mais crítica de sua nação, quando só tinha para oferecer "sangue, suor e lágrimas", logrou unir sua gente no esforço de guerra contra o inimigo nazi, numa das mais edificantes e emblemáticas performances de poder. Conclua-se com o irretocável exemplo de nosso estadista-patriarca, José Bonifácio de Andrada e Silva. Um cientista-naturalista, humanista e, de quebra, indigenista-precursor, que cumpriu seu papel ou a missão de tutor do imperial infante, teorizando, entrementes, sobre poder: "A sã política é filha da moral e da razão"… (Voltaremos ao assunto).
Publicidade*João Vieira é sociólogo e foi diretor do MuseuRondon, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Colaborou na redação deste artigo a jornalista Mariângela Zan.
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