Marcos Verlaine*
O ano legislativo se encerrou em 15 de dezembro, quando os presidentes da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), anunciaram a convocação extraordinária do Congresso. Pouquíssimas matérias realmente relevantes para o país foram votadas. Dá para contar nos dedos: foram apenas quatro. Mas o “produtivo” é discutível e é por isso que está entre aspas.
Quando a crise política eclodiu, a primeira coisa que foi para o espaço foi o processo legislativo. As comissões permanentes da Câmara e do Senado se esvaziaram ainda mais e todas as atenções e tensões da política brasileira se voltaram para as comissões parlamentares de inquérito e do Conselho de Ética da Câmara. O plenário da Câmara também foi sufocado pelas medidas provisórias.
Assim, com a crise em curso e a pauta do plenário sempre travada por MPs, os deputados tiveram um ano legislativo pouco “produtivo”.
A rigor, de importante, relevante, apenas quatro matérias contam para este brevíssimo balanço. Mas também é preciso que se diga que o que conta não é a quantidade de matérias que o Congresso vota. A “Casa das Leis” não é uma fábrica de produção de leis. Por fim, é preciso ressaltar que as crises políticas podem trazer coisas boas e também ruins.
A crise também derrubou o mito da “ética da responsabilidade”, que até há pouco tempo encobria a atuação da bancada tucana no Congresso.
Chamamos atenção ainda para o fato de que nunca um presidente da República foi submetido a tamanha tensão e pressão da imprensa, da oposição e também da base aliada, o chamado “fogo amigo”. Só a persistência, a perseverança e também a vontade de ganhar mais um mandato podem justificar tanta vocação para enfrentar tempestades.
PublicidadeProdutivo, não produtivo
Para a imprensa, o Congresso é produtivo quando vota muitas matérias importantes. Deixa de sê-lo quando assim não faz. Simples assim. Em geral, o simplismo tende a ocultar a verdade dos fatos ou, no mínimo, coloca meias-verdades para o debate.
Do ponto de vista numérico, não há como questionar que o Congresso foi pouco produtivo – sob esse aspecto e fundado numa cultura legislativa ibérica que, para todos os problemas, é necessário aprovar uma lei para resolvê-los.
E deixa de sê-lo – sob a luz da democracia, que é produto do conflito, do atrito e das contradições da sociedade –, pois está submetido a disputas, debates e questionamentos, o que torna não linear a trajetória do processo democrático.
O que foi votado
Em meio à crise, o governo conseguiu aprovar a MP 255/05 (MP do Bem), que concedeu benefícios fiscais a diversos setores da economia (Lei 11.196/05). A norma consolida uma série de medidas que contribuem para o aquecimento da economia, como a isenção do pagamento do PIS e Cofins para empresas exportadoras, incentivos para empresas que investirem em inovação tecnológica; a isenção do imposto de renda sobre a venda de imóvel residencial para quem usar o dinheiro para comprar outro imóvel residencial dentro do prazo de seis meses.
E estabelece ainda novo limite de enquadramento de micro e pequenas empresas no Simples. Atualmente, o Simples considera microempresa a que tem receita bruta anual de até R$ 120 mil e pequena empresa aquelas que têm receita de até R$ 1,2 milhão. Os novos limites alteram esses valores para R$ 240 mil e R$ 2,4 milhões.
Votada ainda na gestão do ex-deputado Severino Cavalcanti (PP-PE), a Lei de Biossegurança (Lei 11.092/05) foi outra matéria relevante para o país. Pela nova lei, fica regulada a comercialização dos transgênicos e a pesquisa com células-tronco. Para aprová-la, governo e aliados travaram disputa renhida com os setores religiosos do Congresso e da sociedade.
O terceiro item foi a aprovação da “Paralela da Paralela” da reforma da Previdência (EC nº 47/05). A emenda constitucional amenizou os efeitos da reforma promovida pelo governo em 2004. E também deve ser contabilizada como importante tema que contribuiu para tirar o Congresso do estado de inação que viveu durante a crise.
Por fim, o Legislativo aprovou a nova Lei dos Consórcios (Lei 11.107/05), que permitirá aos estados e municípios se unir para realizar obras de grande porte. Essa medida pode turbinar a geração de renda e emprego, que certamente ajudarão o crescimento econômico.
O que faltou
Com tão poucas matérias votadas, temas complexos como a reforma política, o controle das agências reguladoras, a reforma tributária e a lei geral das micro e pequenas empresas passaram ao largo em 2005.
Em relação à reforma política, um aspecto chama atenção: por que a oposição, tão indignada com os desvios do PT, não ajudou o governo a aprovar uma reforma política que colocasse no centro de debate o financiamento público de campanha, a fidelidade partidária, a lista fechada e pré-ordenada?
Sim, pois, com a adoção dessas e de outras medidas, grande parte do esquema que vulnera os partidos, a democracia e o sistema republicano estariam, em grande medida, resolvidos.
Síntese
O Congresso, o poder mais democrático da República, sistematicamente submetido ao achincalhe da imprensa e, via de regra, também ao da opinião pública, é a síntese da democracia e conseqüentemente de suas contradições.
O Legislativo não deve ser analisado de forma isolada do processo democrático, do nível de politização ou despolitização do povo, sobretudo os estratos sociais mais pobres e menos assistidos pelo Estado. Isto é, o Congresso é uma síntese do povo brasileiro e assim deve ser analisado. Nenhum deputado ou senador ocupa uma cadeira no Legislativo sem que tenha sido colocado lá pelo povo, pelo voto direto e secreto.
Assim, como co-responsáveis que somos pela democracia representativa, somos responsáveis pelos bons ou maus representantes do povo que, por quatro ou oito anos, no caso dos senadores, se ocupam em fazer as leis deste país.
Crise e conseqüências
A próxima legislatura, que começa em fevereiro de 2007, poderá trazer muitas surpresas. Uma delas é, talvez, a grande renovação que poderá sofrer o Congresso Nacional. Isso, por si só, não é suficiente para aprofundar a democracia, resgatar a dignidade do povo brasileiro e, sobretudo, gerar justiça social.
A crise pode trazer também conseqüências extremamente negativas. Uma delas é o voto de protesto, sem conseqüência, sem lastro, sem base crítica, que traz para a cena política “figuras” pouca ou nada comprometidas com mudanças estruturais e estruturantes.
Desse modo, como analisa o jornalista Mauro Santayana, a “crise de credibilidade do Congresso abrirá espaço para os ‘cacarecos’ nas eleições de 2006. São geralmente nomes populares por serem radialistas, jogadores de futebol e cantores de música popular, mas sem nenhum espírito público. A renovação nem sempre é positiva”, reflete.
Mito
A crise, que não cessou, apenas está de recesso, derrubou um mito muito propalado no Congresso. É o mito da “ética da responsabilidade” que até pouco tempo referenciava o PSBD no jogo parlamentar. O mito foi definitivamente desfeito quando caiu, por decurso de prazo, a MP que criava a Super Receita.
A matéria foi aprovada na Câmara no limite e encaminhada ao Senado, que não deliberou sobre a proposição apenas para desgastar o governo. É verdade que o PT fez muito isso quando era oposição, mas os tucanos eram críticos mordazes dessa prática petista. Assim, está definitivamente desfeito o mito que emoldurava o oposicionismo tucano-pefelista.
Retrospectiva da crise
A crise política, que teve início com as “denúncias” do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ), pode ser medida em cinco episódios. O ano de 2005 – terceiro ano do governo Lula, quando o Planalto pensava em capitalizar a gestão que redundou em estabilidade econômica – foi dragado pelo furacão apelidado pela imprensa de mensalão.
À exceção do desempenho econômico e, em decorrência disso, uma pequena melhora nos indicadores sociais, como renda e emprego, não há muito o que comemorar. Então, vejamos:
O primeiro revés político aconteceu com a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara, que trouxe toda ordem de inconvenientes na relação do Executivo com o Legislativo. O voto de protesto converteu-se em voto vencedor, com todas as implicações desse gesto inconseqüente da oposição e também de parte expressiva da base do governo.
O segundo fato grave, talvez o mais relevante de todos, porque dele decorreram outros, foi a exibição em rede nacional de televisão de um funcionário de estatal recebendo propina para facilitar contratos. Foi a mais cabal demonstração da falência do atual sistema partidário, em que o governo é obrigado a lotear cargos para garantir a “governabilidade”.
O terceiro foi a denúncia da existência do chamado mensalão, feita pelo padrinho político do funcionário flagrado recebendo propina, deputado Roberto Jefferson. Essa denúncia resultou na descoberta do que a imprensa apelidou de "valerioduto", na demissão de diretores de estatais, de ministros de Estado e na destituição de quase toda a executiva do PT.
O quarto foi o cerco ao ministro da Fazenda, Antonio Palocci, por eventuais irregularidades praticadas por seus auxiliares no período em que ele foi prefeito de Ribeirão Preto. Mas também pela participação de alguns desses assessores mediando contratos no atual governo.
O quinto, cujas conseqüências ainda não são mensuráveis, foi o aumento da tensão política, com a oposição perdendo o senso de responsabilidade, ao rejeitar matérias de interesse do país apenas para desgastar o governo.
2006: o que vem por aí?
Ano de eleições gerais e de Copa do Mundo. O Congresso funcionará “normalmente” até abril/maio. Depois, funcionará em ritmo de esforço concentrado até entrar definitivamente em ritmo de exceção, com poucas sessões e votações.
Até lá, a única coisa certa é o fogo cerrado da oposição contra o governo, até as eleições, cuja largada já foi dada. Só cabe agora definir quem será o adversário de Lula: o prefeito José Serra ou o governador Geraldo Alckmin. Como se vê, a disputa será novamente polarizada entre o PT e o PSDB.
Haverá ainda o debate da atualização do salário mínimo, cuja definição emperra a aprovação do Orçamento para 2006. O impasse está entre R$ 340 ou R$ 350, valor defendido pelo governo, e os R$ 400, valor defendido pelas centrais sindicais.
Tem também o debate o projeto de lei que regulamenta o artigo 8º da Constituição. A matéria foi objeto de polêmica na Comissão de Trabalho da Câmara. O debate será retomado no início da próxima sessão legislativa de 2006, em fevereiro.
*Marcos Verlaine é jornalista e assessor parlamentar do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).
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