Por que a sociedade brasileira, não raro com a participação de acadêmicos, não necessariamente intelectuais, confunde interesse público com interesse do Estado?
A falsa ideia de que o Estado, uma vez tendo seus principais chefes ou líderes eleitos pelo voto popular, dá a todos eles a prerrogativa inalienável de representação do interesse público, sem possibilidade de contestação efetiva, não coaduna com a realidade dos novos tempos nem tampouco com a lógica.
Grupos de pessoas, partidos, sindicatos ou, como temos visto, quadrilhas de interesse, têm tomado o Estado de assalto e privatizado para eles a teoria de representatividade do interesse público. Com atenção, ver-se-á que não passam de meros líderes de massas (de manobra?), que, ultimamente, não vão além de grupelhos, embora poderosos financeiramente, com interesses particulares específicos, muito longe do ideal de uma sociedade desenvolvida – esta, sim – baseada em interesses públicos e amplos.
E um comportamento brasileiro tem facilitado o assalto da coisa e do interesse públicos: a certeza do cidadão de dever cumprido e concluído quando se vota, do ato isolado em si que se bastaria no exercício da democracia.É igualmente fato que já há sinais claros de ações em sentido contrário, ou seja, de maior acompanhamento de mandatos e participação popular em profusão. Vide o que ocorre com os movimentos do “adote um vereador”, nas Câmaras Municipais, e as manifestações verdadeiras de rua, não as uniformizadas de vermelho. Mas o voto isolado do trabalho de acompanhamento do eleito é decisório de o como a democracia se deu no país até agora. O “basta votar” e depois se ausentar da participação pública, abdicando por conveniência, convicção estereotipada de democracia ou incompreensão de seu direito e, sobretudo, dever como cidadão, é um incentivador poderoso para o mau uso da democracia por quem recebe um mandato. Uma liberdade indevida consentida ao eleito.
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Esse comportamento do cidadão repassa àquele empossado no cargo, consciente ou inconscientemente, um tempo de quatro anos de uma suposta soberania quase inatacável. Digo quase porque há exceções como as atuações do Ministério Público e da Justiça – algo nem sempre rápido -, as da imprensa – limitadas-, e as das redes sociais, ainda um fenômeno a ser quantificado e qualificado.
Essa dicotomia entre interesse público e interesse estatal salta aos olhos quando ganha aliados na preocupante – e, por que não dizer, mal-intencionada – tese de engessamento democrático das urnas. Uma vez decidido “pela soberania popular do voto”, que se aguardem as próximas eleições. É o preço que pagamos pela maciça presença nas urnas e mirrado ativismo sobre o mandato.
Vejamos um exemplo simples. Se o interesse do Estado comandado por representantes, mesmo que democraticamente eleitos, começa, logo depois ou no meio do mandato, a divergir seriamente do interesse público? Não se pode influenciar? Não se pode mexer mais?O eleitor não pode rever seu apoio? Estaríamos condenados a uma espécie de ditadura de quatro anos da democracia? É estabilidade democrática ou do eleito?
Atualmente, a menos que irregularidades ou ilegalidades sejam cometidas e descobertas, provadas e julgadas, nada tira do mandatário seu poder soberano de quatro anos. Verdades ou promessas de campanha podem ser desmentidas ou descumpridas sem que nada possa ser feito de efetivo. A atual forma de representação brasileira, no Executivo ou Legislativo, é engessada e não imune a mentirosos ou incompetentes, desde que pareçam verdadeiros e competentes na campanha.
Tomo um exemplo apenas, mas é possível estender o modelo de pensamento a outros. A enorme rejeição à presidente Dilma Rousseff está visceralmente exposta nas pesquisas de opinião. E isso logo depois de sua reeleição, tendo como base os descalabros econômicos, a sensação de desgoverno e as suspeitas de corrupção envolvendo duramente membros de seu governo ou dos partidos da base.
Processos de investigação estão em curso. Mas a vida administrativa e econômica do país não obedece a trâmites judiciais.
Se pesquisas de opinião, muito mais imediatistas, e tudo o que as cercam, pelo fato de serem amostragens, mesmo que científicas, não são fato legal para determinar o afastamento de um ocupante de cadeira executiva, são, por outro lado, um sinal poderoso de percepção popular, extremamente capaz de dissolver parlamentos, depor primeiros-ministros, provocar renúncias, convocar novas eleições e refazer governos mundo afora. São igualmente sinais claros aos mandatários de plantão que eles estão no caminho errado.
Haverá alguém a dizer, com razão, que a popularidade é uma mensuração momentânea, tanto quanto seu antônimo. Ou que pesquisas de opinião não têm o mesmo valor de eleições. Pesquisas refletiriam um momento da parcela perguntada, que pode ser mudado, e não teriam a certeza de representação da maioria.
Por outro lado, eleições seriam a manifestação expressa e quantificada em termos absolutos, não de amostragem, de todos os que foram votar de forma válida e a expressão de suas vontades registradas.
É fato. É possível concordar com ambos os conceitos e discordar deles também. Só não se pode parar de discutir. Não ainda.
De novo, pra pensar, uma nova provocação: não é injusto dizer que eleitores, durante a campanha, são expostos a um bombardeio de propagandas exageradas e mentirosas com o claro objetivo de influenciar seu voto que compromete a tese de soberania popular qualificada, ou seja, movida por fatos concretos, reais e com consciências livres? Que o voto não foi a manifesta vontade do eleitor apenas por si, mas pelo entorno maldoso que o convenceu a escolher esse ou aquele? Utópico isso? Talvez. Mas a manipulação perversa das campanhas não é nada utópica.
Afinal, o que foram as denúncias de utilização dos Correios na distribuição de material de um candidato em detrimento do outro? E o uso dos programas sociais transformados em argumento de campanha, em detrimento de se solidificar na população a concepção de que aquilo lhes era um direito já estabelecido? E as maquiagens, as cenas cinematograficamente trabalhadas? Utopia, né?
Concluindo minha provocação, não seria justo também dizer que pesquisados ofertam sua opinião de forma livre e refletindo a situação atual em que se encontram sem, pelo menos, esses artifícios da propaganda pra ganhar a eleição? Não seriam, mesmo que sob uma amostragem, a representação legítima de suas vontades? Influenciados pela imprensa, pelo noticiário, mas também pela sua realidade e sem a pressão de que a sua opinião na pesquisa tem valor inquestionável de quatro anos. Não é utopia, é?
Este artigo e seu autor não têm a menor pretensão de diminuir a importância do voto, tirar a legitimidade da consagração das urnas e sugerir a troca de uma eleição por uma pesquisa. Não dê asas à maledicência. Ao contrário, eu só me incomodo com o sistema eleitoral brasileiro que engessa as escolhas em plena democracia e dá ao eleito o poder legal dessa insensibilidade de quatro anos ante as evidências de que encarna uma má escolha dos eleitores.
É por acreditar em aperfeiçoamento e na discussão de democrática, inclusive dos modelos de escolha vigentes, que acredito que precisamos discutir o sistema presidencialista brasileiro.
Igualmente pelas mesmas crenças, eu não me permito ignorar o valor real de medidores sérios, auditados e em uso no mundo todo como as pesquisas, os índices governamentais de eficiência e de capacidade de gerar credibilidade de um governo como norteadores para uma nação decidir-se ou corrigir-se.
Além disso, se as pesquisas correm imponderável risco de serem manipuladas – o que necessita de comprovação –, eleições não ficam atrás, o que também precisa ser comprovado.
A minha discussão com argumentos pra um lado ou para outro se resume na questão da defesa da legitimidade integral, real, ideal e verdadeira. Não apenas na que é, indiscutivelmente pela legislação atual, entendida como legal.
Se pesquisas levantam suspeitas, a percepção coletiva de que as campanhas passam ao largo da honestidade intelectual, marqueteiros vendem mentiras douradas e que a Justiça Eleitoral não é eficaz nem rápida para atuar nas distorções – uma razão para nos preocuparmos – coloca o pleito sob a mesma escuridão de questionamentos. Já percebeu que parte significativa dos eleitos é rapidamente questionada, perde popularidade, em menor ou maior grau, nos primeiros meses de mandato? Não me parece tão difícil entender a assimetria de o que se diz em palanques e o que se pode fazer de fato quando se está sentado em cadeiras, embora uma coisa leve efetivamente a outra.
Se a democracia do voto é legítima, a mesma democracia permite que questionemos seus valores com o único objetivo de aperfeiçoá-la.
Não para diminuir uma conquista imensa e inalienável da cidadania brasileira, mas para fazê-la melhor e, com isso, afastá-la ao máximo de grupos estranhos que se aproveitam das imperfeições do sistema. Defendê-la de absolutismos ou manipulações, à esquerda ou à direita, e fazê-la um instrumento da verdadeira vontade e soberania popular. Não me parece que esteja sendo isso o que acontece. Hoje, a se ver a discrepância entre uma eleição e a performance administrativa e nas pesquisas de opinião de um eleito, independentemente de partidos, o voto quase resvala perigosamente naquele conceito popular de “ruim com ele, pior sem ele”.
Essa sensação se configura num enorme desestímulo à política, essencial a uma nação democrática.
O direito ao voto de milhões de brasileiros hoje custou caro a milhões de brasileiros ontem.
A redemocratização não foi de graça.O seu engessamento e a falta de coragem para repensá-la como forma de fortalecê-la, de não deixá-la se afastar da vontade e dos interesses públicos reais, não os deliberadamente do Estado e por quem está afrente dele, é um risco à essência da conquista.
Por isso, eu defendo meios que despoluam o voto de abstrações marqueteiras da realidade e que o eleitor se veja, não somente com o dever de acompanhar de perto o mandato dos eleitos, algo que tem abdicado, mas que existam meios de reversão plausíveis e democráticospara escolhas que se mostrem erradas. Entender isso como um estímulo à instabilidade é bobagem. O que defendo é constância e verdade entre a campanha e o mandato.
Claro que um comprometimento dos candidatos com a verdade, com a lisura e a redução extrema desse estereótipo de marketing eleitoral, equivocadamente chamado de “marketing”, seria o ideal. Mas a média política, ao menos a brasileira, não tem gerado isso nem a legislação eleitoral é capaz de inibir ou conter com celeridade as distorções.
Não é difícil imaginar que similares situações de desconforto e descontrole de regimes quase intocáveis de quatro anos, como é o caso brasileiro, que geram indevidamente soberanos e absolutistas com ínfima sensibilidade social e imensa prepotência pessoal, podem ter sido a motivação para que nações, hoje muito mais desenvolvidas no mundo, tenham adotado o parlamentarismo ou formas alternativas ao presidencialismo. Formas em que a vontade popular das urnas não fique subjugada por períodos grandes, e que possam ser revistas e revisadas sob a lei e a tranquilidade institucional, por meio de dissoluções de parlamentos, novas eleições e novas vidas.
Sem nenhuma pretensão histórica de explicar o parlamentarismo adotado por essa ou aquela nação, que ao menos nós, os brasileiros, passemos a considerá-lo como uma forma de nos proteger dessa espécie de reinados “democráticos” insensíveis estabelecidos de quatro em quatro anos.
Um voto ruim se corrige com outro voto na interminável saga humana de acertar um dia.
Afinal, de qual interesse estamos falando? Do público ou do Estado?
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