Márcia Denser*
(No mês de novembro, 12 anos atrás, escrevi esta última carta para meu amigo, o escritor Caio Fernando Abreu. Pouco antes, tivera um encontro bastante emocionado com ele, no lançamento da coletânea Ovelhas Negras na livraria Cultura. Rodei, virei, mexi, escrevi esta carta que retive um tempão, sem coragem de mandar. Me parecia demasiado cruel, dadas as condições dele. E quando finalmente a enviei – final de janeiro – ela não mais o alcançou, pois Caio veio a falecer numa praia gaúcha, com sua fiel amiga Déa ao lado, em fevereiro de 1996.
De forma que a carta voltou, zummmmmmmmmmmm, retornando ao remetente, uma carta boomerang. E profética (senão, confiram o primeiro parágrafo).
Que tornei uma peça de ficção. Mas que, não menos misteriosamente, esqueci de incluir em minha obra escolhida, o Toda Prosa II. Com um prefácio de outro gaúcho, Fabrício Carpinejar, escrito em forma de carta, algo entre declaração de amor e confissão de fé literária, e o texto mais sublime entre todos que me foram feitos na vida. Estará nesse livro, também a sair em fevereiro, depois do carná.
"Caio, meu querido,
Supondo que quisesse te escrever, como de há muito, supondo que finalmente escrevesse e remetesse enfim a mensagem ao destinatário, ainda assim seria sempre uma carta boomerang, zummmmm, retornando ao remetente, devolvida como reflexo no espelho, pergunta que se repete num eco sem respostas, silêncio de palavras não ditas, de gestos desfeitos.
De qualquer forma, esta não seria realmente a maneira mais gentil de se começar uma carta, mensagem que (supostamente) inclui (deveria incluir) o destinatário, o outro no extremo da corda sobre a qual oscilamos, você e eu, juntos e irremediavelmente separados em meio a tudo isso em que estivemos metidos até o pescoço, isto que chamamos vida, ergo literatura e, já que estamos no assunto, o que nos resta dizer um ao outro?
PublicidadeNós, que nos traímos, íntimos inimigos, irmãos unidos pelos indissolúveis laços daquilo que só posso chamar literatura (ah, a literatura, assim que escrevo sinto nojo), esse luxo desnecessário, essa palavra tão, este palavrão; naturalmente supondo que alguém ainda leia com aquele fervor orvalhado dos 20 anos, como líamos Cortázar, Borges, Mário e Oswald, Faulkner, Elliot, Dottie Parker, Clarice, Rosa, Drummond ou Ana Cristina César (o fato é que nem sempre coincidíamos), sem contar que estou tão distante disso a que chamam literatura – digo, atualmente – a corda estirada da qual saltamos em 1989, você e eu. Sem rede embaixo.
Porque não fomos os únicos neste braço-de-ferro, neste mano-a-mano com a vida, neste ato kamikaze e sem volta, não fomos os únicos a nos arrebentar, mas não quero ser extensiva (basta a corda), bastam dois (nós dois) e o nome será legião.
Sem contar que ninguém desce vivo duma cruz.
E de quantas maneiras se pode morrer, digo, futuramente?
Supondo que haja futuro.
Por exemplo, para o Paulo Coelho há, para a Roseane Collor nem pensar, para os Anjos Angelicais et alli nem falar, and last but no least, Edir Macedo, O.J.Simpson e Bill Gates, é claro (que porra, já nem consigo ser engraçada).
Porque não quero falar da inversão de valores.
Mas supondo tudo isso, a medida do homem onde?
De quebra, o quebra-quebra geral da classe média, dos “mais lúcidos e sensíveis”, daqueles que prometiam tanto, quebrando aqueles (nós) que acreditavam que o futuro fosse possível, que o milagre e o Brasil se consumassem (devíamos estar malucos), nós, que aos 20 anos ríamos tanto, do alto dum futuro inexpugnável.
Contudo se o Brasil não tem História, só Geografia, ONDE entra Alagoas nisso?
Supondo que se encontre Alagoas no mapa da Suíça. Ao sul do Mercosul.
Naturalmente é melhor enfiar o bom senso no cu, a viola no saco e a cara na revista Caras que é a cara do Brasil/2000. Na capa, Denilma Bulhões & Toalhas Molhadas: A Mãe Pátria. Enquanto isso, na novela das oito, um gerente de banco negro, tão bonzinho e sensível e galã, embrulha pra presente as mesmas tramas e intrigas de 40 anos luz atrás e ninguém nota, por que, Caio, por quê? Esse horror à realidade? Aliás, onde a realidade?
Ok. Me manda pro inferno, cara, diz que estou amarga, é só estalar os dedos que eu desapareço, porque, ah, a lucidez – outro luxo – ah, a consciência, e, ah, sim, a leitura destas tuas Ovelhas Negras: 20 anos de lobo e de cão, de amor e poder, de glória e de dor, em todo caso de pé na estrada por quem sabe onde pisa. Porque ISTO é a realidade, é o que importa (me importa). Tua obra, tua essência, tua permanência – isso que pulsará em qualquer tempo, reproduzindo para sempre o nosso tempo, mar aberto ao infinito.
E agora, meu chapa? Em meio às hecatombes editoriais vigentes e circunvizinhas, a medida do escritor onde? Ergo, quem vai te decifrar? Digo, futuramente? Supondo que restem uns longes de lucidez nesses tempos sombrios, clarões no coração da treva.
E por derradeiro, com meus sinceros votos no sentido de que a puta vestida de verde ainda durma na cama ao lado (outra sórdida metáfora que inventei pra botar no lugar da esperança), suponho que, no fundo, no fundo, tive que te dizer isso tudo porque estou condenada a viver.
Inesquecivelmente,
Márcia Denser”
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