Márcia Denser *
Retomando a discussão a respeito de alguns conceitos centrais da cartilha neoliberal, tais como "mercado livre", "modernidade" e "liberdade", aparentemente tão progressistas, arejados, transparentes, mas cujos significados correntes obliteram-se, tornam-se opacos, quando colocados em prática.
Se em coluna anterior apontamos os efeitos devastadores no mundo todo do mercado livre, porque ele também significa "Estado mínimo", "privatizações" (com dinheiro público, claro), menos regulamentação estatal, menos políticas sociais (por gerarem "dependência" do Estado) etc., nesta, atacaremos a questão da "modernidade", outra palavrinha-chave da retórica neoliberal de semântica dúbia, quando não inversa ao conteúdo original.
Voltando à leitura de Jameson (1), este prossegue citando John Gray, um pensador de direita um pouco mais moderado do que Samuel Huntington, ex-estrategista do Pentágono, cuja obra The clash of civilizations ele também discute. Aliás, tanto Jameson quanto eu nada temos contra pensadores de direita, desde que argumentem com elegância e respeitem o ponto de vista alheio, sem subestimar nossa inteligência.
Assim, Gray observa que existem muitas "modernidades": o capitalismo de parentesco da diáspora chinesa, o capitalismo samurai no Japão, os chaebol (2) na Coréia, o "mercado social" na Europa e até o anarco-capitalismo mafioso da Rússia da atualidade – todas essas "modernidades" pressupõem formas específicas preexistentes de organização social, baseadas nos modelos de ordenação da família, seja em clãs, seja em redes estendidas.
Nesse aspecto, a resistência ao mercado livre global não é, afinal de contas, cultural, mas de natureza social: as diferentes culturas se caracterizam segundo sua maneira de fazer uso de tipos distintos de recursos sociais – coletividades, comunidades, associações – para se sobrepor e resistir aos efeitos do mercado livre. Elogiam-se os regimes que alcançam a modernidade através da renovação de suas próprias tradições culturais.
Mas qual o significado exato que podemos atribuir à "modernidade"? E o que explica seu atual prestígio após a guerra fria, após o descrédito tanto da versão comunista quanto da capitalista de modernização? (E aqui reporto-me ao livro O colapso da modernização, do sociólogo alemão Robert Kurz, já discutido em coluna anterior).
PublicidadeJameson é categórico (e eu vou citá-lo literalmente): "Sim, houve um recrudescimento no uso da palavra ‘modernidade’ – no sentido de ‘modernização’ – no mundo todo. Será que a palavra se refere à tecnologia moderna? Se for o caso, então quase todos os países do mundo já foram há muito tempo modernizados, têm automóveis, telefones, aviões, fábricas, computadores, celulares e bolsas de valores locais.
Continuo citando literalmente: "Será que ser insuficientemente moderno – no sentido de atrasado mais do que no de pré-moderno – significa simplesmente ter pouco dessas coisas ou não fazê-las funcionar de maneira eficiente? Ou será que ser moderno significa ter leis e uma Constituição ou viver como as pessoas nos filmes de Hollywood?"
Para Jameson, "modernidade", tal como se usa e abusa atualmente, é uma palavra suspeita nesse contexto, e está sendo usada precisamente para acobertar a ausência de qualquer esperança, ou telos, social coletiva depois do processo de descrédito do socialismo.
Isso porque o capitalismo em si mesmo não tem nenhum objetivo social. Sair usando a palavra "modernidade" a torto e a direito, em vez de "capitalismo", permite que políticos, governos e cientistas políticos finjam que o capitalismo tem um objetivo social e que disfarcem o fato horrível de que não tem nenhum. Os autores consideram que "os países vão ter que aliviar os rigores do mercado livre através da fidelidade às suas próprias tradições culturais".
A abordagem de Jameson, via John Gray, apoia-se essencialmente na luta discursiva, ou seja, na quebra do poder hegemônico da ideologia neoliberal. Ele ressalta a força da "má consciência nos Estados Unidos", que só pode ser destruída por uma enorme crise econômica e, para ele, uma crise dessa natureza é iminente.
Em tempo: qualquer semelhança, qualquer identidade da "má consciência norte-americana" com a "hipocrisia e furor moralizante nacionais" realmente não é mera coincidência, mas previsível, normal, óbvia.
Porque a má consciência coletiva – de ontem, de hoje e de sempre – é regida por padrões universais.
(1) In "Globalização e Estratégia Política", pgs. 32-34, A cultura do dinheiro, Rio, Vozes, 2002.
(2) Grandes grupos privados de propriedade familiar.
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