Cláudio Versiani, de Nova York*
Domingo, 11 de setembro de 2005. O sol domina o céu azul de Manhattan numa manhã de verão como outra qualquer. No metrô as pessoas estão diferentes, parecem diferentes. Têm um olhar meio perdido no tempo. O 11 de setembro é um dia que não acaba nunca, assim como o sofrimento gerado pelos atentados de Osama e sua turma. A catarse coletiva é permanente. É o dia do sofrer.
O tempo passa e o sofrimento não acaba, só aumenta. Novos fatos ajudam a alimentar a sensação de que tudo poderia ter sido evitado. Três ou quatro terroristas, inclusive o chefe, Mohamed Ata , foram identificados como terroristas que planejavam um ataque aos EUA, um ano antes do fatídico 11 de setembro de 2001. E até um membro da Al Qaeda foi descoberto no Brooklyn, segundo um relatório secreto da inteligência militar. O governo nega tudo. É o que eles sabem fazer de melhor. O governo de George Bush é uma negação.
Entrevistas com os bombeiros que estavam na torre norte e que, por isso mesmo, sobreviveram mostram que os bravos, como eles são chamados, não faziam a menor idéia do que estava acontecendo na torre sul. Muito menos que ela tinha caído às 10h05. Alguns estavam tão despreocupados que descansavam dentro da torre, esperando por ordens que nunca chegaram, porque os rádios simplesmente não funcionaram.
Esses depoimentos ficaram no cofre por três anos e só agora, por ordem judicial, foram liberados. O prefeito Michael Bloomberg sempre foi contra torná-los públicos. Bloomberg prestou depoimento à comissão de investigação e disse que os bravos preferiram socorrer os civis, mesmo sabendo que as torres poderiam desabar. O prefeito chegou a dizer que os bombeiros salvaram 25.000 pessoas. Hoje se sabe que não foi bem assim.
As torres continuam caindo sobre as cabeças americanas. Ao todo, 2.749 pessoas morreram. Mais de mil pessoas sobreviveram ao impacto dos aviões mas não conseguiram sair dos prédios. O projeto das torres não contemplava o número adequado de saídas de emergência. Ainda assim os proprietários conseguiram aprovar o empreendimento com a metade das saídas necessárias. Conseqüentemente, um maior número de escritórios pôde ser construído. As informações estão no livro “102 minutos”, dos jornalistas Jim Dwyer e Kevin Flynn. O título faz referência ao tempo decorrido entre o choque do primeiro avião e a queda da segunda torre.
PublicidadeAo todo, 343 bombeiros morreram dentro dos prédios e estima-se que pelo menos 200 estavam na torre norte. O lapso de tempo entre a queda das torres foi de exatamente 29 minutos. Uma diferença que significou vida e morte. Poucos bombeiros sabiam que um segundo avião havia atingido a torre sul. Dos 58 que escaparam e deram depoimentos, só quatro tinham consciência que o World Trade Center sul não existia mais. As escadas não tinham janelas e o aviso de abandonar o prédio nunca chegou. São histórias de quatro anos, mas só reveladas agora. Assim fica difícil enterrar os mortos e sepultar o passado. As torres caíram e levaram junto o mito americano de grandeza. O mito de que são os melhores do mundo em tudo, invencíveis e indestrutíveis.
11 de setembro de 2005, Marco Zero, a ferida aberta da América. Os familiares das vítimas desfilam com suas camisetas, bottons e cartazes com fotos dos mortos. É uma procissão subindo e descendo a rampa de acesso ao buraco. Lá embaixo, no solo sagrado do memorial, os parentes lêem os nomes das 2.749 vítimas num enorme sofrimento coletivo.
Há os que querem ser fotografados e os que não querem. Há os personagens do ano passado e os do ano retrasado. Há os novatos fazendo a sua estréia. Há os malucos desfilando pelas ruas laterais do Marco Zero. Maluco nunca está em falta em Nova York. E há os olhos mareados. Há flores e muitas lágrimas.
Quatro anos depois, os americanos são obrigados a passar por mais um 11 de setembro inesquecível. Duas semanas depois do Katrina, ainda se contam os corpos das vítimas do furacão. Arrogância, desonestidade, despreparo, desleixo, inépcia, ineficiência, negligência, incompetência e preconceito são os adjetivos que tentam qualificar o desempenho da administração Bush no manejo da tragédia mais anunciada da história americana. Mas que também se encaixam no episódio 11 de setembro. No dia 6 de agosto de 2001, Bush recebeu um relatório alertando que Osama Bin Laden planejava o seqüestro de aviões para jogá-los contra alvos em terras americanas. E esse não foi o único aviso que o governo recebeu. Há registros de vários outros. Logo depois, Bush partia para suas férias de verão no seu rancho no Texas. Deu no que deu. Mais de 1.400 dias se passaram, e Osama ainda está solto por aí.
Não bastasse o 11 de setembro e o fiasco da guerra do Iraque, a mãe natureza resolveu conspirar contra o presidente. Katrina revelou a face mais feia da América. O furacão mostrou o país dividido por raça, brancos e negros, e por classes sociais, pobre e ricos. Quem tinha carro e dinheiro se mandou de Nova Orleans. Os que não tinham ficaram ao Deus dará. E Deus não deu nada, à exceção de muita água. Na segunda-feira, 12 de setembro, 45 corpos apareceram em um hospital da cidade. Mais uma vergonha americana, cidadãos abandonados à própria sorte, sem água, luz e com os termômetros passando dos 38 graus.
Bush foi obrigado a visitar a região pela terceira vez e posar para as fotos de sempre, na tentativa de barrar a tendência de queda de sua popularidade. Mostrar que é o comandante-em-chefe de verdade. Na quinta-feira, ele voltou ao olho do furacão, na sua quarta viagem. O presidente viu Nova Orleans devastada e declarou que a cidade parece ter sido atingida pelo pior tipo de arma. O deputado democrata Dennis Kucinich disparou de volta: “Indiferença é uma arma de destruição em massa”.
A mãe de Bush, a ex-primeira dama Barbara Bush, foi ver de perto os refugiados num estádio no Texas e disse que a situação deles era muito boa, já que eram pobres mesmo. A família Bush não pode abrir a boca sem um script ou um discurso preparado.
O 11 de setembro mudou o mundo. Os Estados Unidos mudaram. Bush soube aproveitar o momento e usou os atentados como pretexto para duas guerras intermináveis. Vai ser difícil fazer o mesmo com Katrina: 57% dos americanos desaprovam o desempenho do presidente George Bush.
Na última terça-feira, 13 de setembro, o presidente finalmente aceitou a responsabilidade pelo fracasso do governo federal. O furacão atingiu a Costa do Golfo no dia 29 de agosto. Duas semanas depois Bush se rendeu aos fatos.
E o fato é que o sonho americano está se tornando um grande pesadelo. Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre desigualdades sociais revelou que algumas partes dos Estados Unidos são tão pobres quanto países do terceiro mundo. Essa era uma realidade submersa. Os corpos boiando em Nova Orleans chocaram o país e o mundo, e mostraram um feio retrato da América. O governo tentou desencorajar a publicação de fotos dos cadáveres. Não deu certo. O mundo todo viu.
Os americanos são normais. Vistos de perto, são vulneráveis como quaisquer seres humanos. Rambo, só no cinema. Bush está atordoado, a pobreza exposta de Nova Orleans mostrou a inépcia do governo. O imperador esta nu. O furacão Katrina marcou George Bush para sempre. É impossível olhar para a cara do presidente e não ver a incompetência de sua administração.
O 11 de setembro é o passado que teima em não ir embora. Katrina é o presente que todos gostariam que fosse passado. E o futuro é o medo que algum dia a América também tenha essa cara feia da pobreza.
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