Márcia Denser*
Acompanho na ESPN Brasil os jogos desta Copa porque ali encontrei jornalistas que manifestam um pensamento progressista, a exemplo de Juca Kfouri e José Trajano, diariamente na mesa redonda "Linha de Passe", até porque o jornalismo esportivo é um tradicional reduto do pensamento reacionário onde o pior da Copa não é agüentar a onda de patriotismo que invade a publicidade, do comércio verde-amarelo ao ufanismo midiático, mas os comentários idiotas do Galvão Bueno nas transmissões pasteurizadas pela Globo, embrulhando um jornalismo chapa-branca que um Brasil mais politizado e menos ingênuo não merece mais.
Aliás, Juca (em todas nesta Copa), muito bom na entrevista de capa da Caros Amigos deste mês, discutindo questões do nosso futebol em tempos neoliberais. Para ele, as distorções do futebol levam à criação de outras distorções: "O mundo do futebol foi se tornando uma coisa tão nojenta, tão asquerosa, que as pessoas que queriam investir seriamente em outros esportes começaram a criar esse tipo de coisas: Pirelli, Bradesco, Leite Moça. Você se vê num ginásio berrando: Leite Moça, Leite Moça!!!? Pirelli, Pirelli!? Você vai torcer pra pneu? Não era muito mais fácil patrocinar a camisa do time de voleibol do Palmeiras? A Nestlé patrocinar o time de basquete do Flamengo? E aproveitar a marca do futebol, a tradição para empurrar? Por que não é assim? Porque esses caras não vão lá fazer caixa dois e dar dinheiro na mão de dirigente sacada. Então se criam essas coisas paralelas, artificiais".
Daqui a dez anos no Brasil, a falência e o esvaziamento progressivo dos times e dos estádios configurariam um panorama onde se criariam atletas que iriam direto da escolinha ou várzea para a Europa, sem passagens por times brasileiros. Quanto à CBF, o quadro é semelhante, porquanto esta incentiva exclusivamente a seleção. Para Kfouri, o objetivo da CBF seria manter o futebol do país no próprio país, mas isso não acontece: "Você vai a uma loja em Paris, Londres ou Madri e encontra a camisa da seleção brasileira, é a que mais vende. Não encontra a camisa do Flamengo, do Santos, do Corinthians, mas encontra a do Boca Junior, do River Plate, do Real Madrid. Não encontra de nenhum time brasileiro, só da seleção. Aí, aquilo que deveria ser obrigação deles – fazer um futebol nacional que permitisse que nossos ídolos permanecessem no país – eles não fazem, fazem o inverso."
A longo prazo, não seria algo como matar a galinha dos ovos de ouro?
Sim, seria, como em todo o resto. É a lógica do neoliberalismo aplicada ao futebol. A mesma lógica que se aplica ao comércio de matérias-primas, à produção de celulose, ao setor de serviços (água, transportes, telefonia), ao sistema financeiro por parte das multinacionais européias. Isso significa que a América Latina está sofrendo outra recolonização, não mais pela força das armas, mas pelo poder financeiro.
Resumindo: é ver Pelé como garoto-propaganda da Aracruz.
PublicidadeOra, que mal há no fato do sujeito aparecer por segundos com uma bola, sucedido pelo logo da Aracruz?
Um mal terrível, e explico porquê: para começar, trata-se de Pelé, do rei Pelé, não do homem ou do cidadão-Pelé (embora mesmo assim já seja terrível), não um mero Alckmin, um mero Serra, lacaios a serviço do capital, subpolíticos que atuam contra os interesses da população que os elege e cujos perfis liquidam-se com três adjetivos e um ou dois nomes próprios, não, ele é Pelé.
Um símbolo poderoso, uma instituição nacional, o nosso herói cultural sintetizando talento, vitória perfeita, excelência, garra & modéstia conjugadas. Do negrinho pobre de Santos – o ponto de acumulação de toda miséria e injustiça do continente – a atleta do século.
Será que Pelé não sabe, ou sabe e não se importa, ou sabe e concorda que a Aracruz implante o monocultivo do eucalipto com dinheiro brasileiro em, digamos, 200.000 hectares das últimas reservas de Mata Atlântica (sul da Bahia) e mais 300.000 no Rio Grande do Sul, financie a campanha de políticos, exigindo fidelidade a seus projetos e a desobrigação do cumprimento das leis ambientais que em seus países obedecem rigorosamente? Que reserve para si os altos lucros, o controle dos mercados europeu e norte-americano, nos deixando a pobreza, o desemprego, a dilapidação ambiental, terras imprestáveis para agricultura, alteração no clima e a contaminação das águas pelo uso intensivo da soda cáustica ao transformar madeira em pasta de celulose?
Será que Pelé não sabe, ou sabe e não se importa, ou sabe e esteja de acordo que a Aracruz, por sua própria natureza e finalidade devastadoras, financie a imprensa com altíssimas verbas de publicidade para que faça sua defesa, usando e abusando de ídolos nacionais? Passo a bola ao leitor.
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