Se vier mesmo a ser implementada na prática, a anunciada disposição do Congresso em “flexibilizar” o trancamento das pautas de votação em plenário decorrente das medidas provisórias deve fazer uma diferença apenas marginal sobre o processo legislativo. E certamente não terá os efeitos proclamados por seus defensores.
A possível mudança no alcance das MPs vem sendo cogitada – segundo recentes relatos da imprensa – pelos presidentes Michel Temer (PMDB-SP) e José Sarney (PMDB-AP). As novas regras não exigiriam nenhuma alteração prévia da legislação, e estariam baseadas numa interpretação mais flexível do artigo 32 da Constituição.
Segundo o texto constitucional, as medidas provisórias editadas pelo governo passam a trancar a pauta de votações do plenário da Casa em que estiverem tramitando após 45 dias de sua publicação no Diário Oficial. O trancamento da pauta por MPs com prazo de tramitação vencido impede que deputados e senadores possam votar em plenário todos os demais tipos de matérias legislativas.
A nova interpretação proposta pelos presidentes da Câmara e do Senado prevê a possibilidade de convocação de sessões deliberativas extraordinárias dos dois plenários – mesmo que a pauta esteja trancada por MPs nas sessões ordinárias – para a votação de emendas constitucionais, projetos de lei complementar, resoluções e decretos legislativos.
As primeiras análises dessa possível mudança pecaram por aceitar passivamente a retórica dos presidentes Temer e Sarney – naturalmente empenhados em tentar melhorar a arranhada imagem pública do poder legislativo. A idéia também vem sendo equivocadamente apresentada como uma limitação do poder de agenda do Palácio do Planalto sobre o Congresso. Mas esse diagnóstico carece de fundamentação empírica.
A grande maioria da legislação votada no Congresso se origina de medidas provisórias e de projetos de lei ordinária. Essas duas rubricas totalizaram, respectivamente, 89,7% e 93,5% das matérias legislativas (MPs, PLs, projetos de lei complementar e propostas de emenda constitucional) aprovadas na Câmara em 2008 e em 2007. Os números referentes ao Senado não devem ser muito diferentes destes. E todo esse universo de deliberações simplesmente não seria afetado pelas mudanças atualmente cogitadas!
Mesmo que forcemos um pouco a barra e consideremos as resoluções e decretos legislativos no universo das matérias aprovadas na Câmara, as MPs e os PLs ainda responderiam pela maioria absoluta da produção legislativa nos dois primeiros anos da atual legislatura (49,8% em 2008 e 60,6% em 2007). Mas o fato é que as resoluções e decretos legislativos pouco afetam a vida de quem está fora do Congresso, portanto os números do parágrafo anterior expressam melhor a realidade.
Assim, há poucos motivos para supor que as cogitadas mudanças na interpretação dos efeitos das medidas provisórias possam trazer grandes novidades institucionais – seja sobre a dinâmica interna do Congresso, seja sobre o padrão de relacionamento entre o executivo e o legislativo.
Se é verdade que os parlamentares passariam a ter janelas de oportunidade adicionais para aprovar, por exemplo, mais projetos de lei complementar e mais propostas de emenda constitucional, também é verdade que essas matérias exigem quoruns mais elevados em plenário para serem aprovadas. O balanço da produtividade legislativa ao final de 2009 certamente mostrará que as MPs e os PLs continuarão respondendo pela “parte do leão” das novas leis aprovadas no país.
Sob um outro ponto de vista, a possível mudança na sistemática do trancamento de pauta no Congresso pode até facilitar a vida do governo. Vale lembrar que uma boa parte da agenda legislativa do Palácio do Planalto tramita sob a forma de projetos de lei complementar ou de propostas de emenda constitucional. É o caso, por exemplo, da reforma tributária, do novo marco regulatório para os gastos com pessoal do governo federal, das novas regras para a concessão de licenças ambientais, do projeto que autoriza a criação de fundações estatais de direito privado e do projeto que flexibiliza a lei de responsabilidade fiscal. Em tempos de crise internacional, a eventual abertura de novas janelas para a votação de projetos dessa natureza provavelmente será até comemorada pela equipe econômica do governo Lula.
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