Cláudio Versiani, de Nova York*
Como é dura a vida do eleitor brasileiro. Não bastasse um direito universal ser transformado em obrigação, ainda temos que escolher entre o bem e o mal, entre o preto e o branco, como se a vida não oferecesse outros matizes.
Lula disse que não perdeu a paciência em momento nenhum. A minha já vai longe. Alckmin se declarou um homem de fé, temente a Deus. Eu também, mas o que eu temo é um governo de mais um homem de Deus. Estamos num mato sem cachorro.
Depois de 20 anos de ditadura, quatro eleições presidenciais e cinco presidentes, ficar discutindo se Lula é o capeta ou se Geraldo é o santo, ou vice-versa, é um pouco demais. Depois de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e quatro anos de Luiz Inácio da Silva, acredito que merecemos um pouquinho mais. Desconfio que o Brasil era um país melhor e mais justo antes de 1964 e da ditadura, ou seja, há 42 anos. Mas isso é passado. Vamos pra frente. Se existe futuro, vamos torcer para que a luz no fim do túnel não seja um trem vindo em sentido contrário.
Há um outro Brasil que insiste em ficar na penumbra. Na verdade, nos recusamos a aceitar que esse país existe. Andei por Salvador e conheci, ainda que superficialmente, o trabalho do Gapa com as crianças e adolescentes portadoras do vírus HIV. Outra ONG da Bahia, a Ceafro, na qual jovens negros lutam por inclusão social, também tem um trabalho bonito de se ver.
Em Niterói, passei alguns dias com o grupo "Pela Vidda", que também cuida de crianças com Sida ou Aids. No Recife conheci o trabalho do "Viva Rachid", mais uma ONG na luta contra a Sida. Em Olinda, acompanhei o dia-a-dia do Centro de Referência à Infância e Adolescência (Cria).
PublicidadeO Unicef Brasil apóia esses e outros projetos. Em 11 estados, a agência da Nações Unidas desenvolve um programa junto com municípios, que busca a melhoria da qualidade de vida para crianças e adolescentes. Uma idéia simples envolvendo as comunidades que pressionam as prefeituras para conseguir níveis de qualidade de vida razoáveis para todos. É uma revolução silenciosa, trabalho de gente abnegada. Boas notícias deveriam estar na mídia, mas nem sempre dão Ibope. Vale lembrar que a revista Época dedicou a capa e mais 22 páginas ao tema em 2 de outubro. "Fazer o bem faz bem" foi o título da matéria.
Ainda na Bahia, fui conhecer a Creche Comunitária Nossa Senhora da Conceição, que fica no bairro da Paz, periferia de Salvador, obra de D. Maria Conceição dos Santos, 45 anos. Ela trabalhava como doméstica e estudava à noite. Em 1984, teve um filho e se viu obrigada a ficar em casa para tomar conta da criança. Começou então a fazer o mesmo com os filhos dos vizinhos. Em 1986, resolveu abrir a creche com 32 crianças. Invadiu um terreno da prefeitura e construiu um barraco.
D.Maria da Conceição fez de tudo para alimentar as crianças, até pedir por comida que seria jogada fora, nos mercados de Salvador. Hoje, ela toma conta de 100 crianças ao preço de R$ 12 mensais, contribuição que nem sempre é paga. A creche sobrevive de doações, e o almoço do dia seguinte é uma incógnita. Alguns parentes e amigos ajudam na administração da creche.
A distância que existe entre D. Maria e os mensaleiros ou sanguessugas só pode ser medida em anos-luz. É a diferença entre ser digno ou não.
O mesmo se pode dizer do Grupo Pela Vidda ou do Cria, de Olinda. São pessoas que resolveram agir, independentemente dos governos municipais, estaduais ou federal. Não interessa a eles se o prefeito, governador ou presidente é o capeta ou o santo. Reivindicam ajuda e lutam por uma sociedade melhor, para mim, para você e para eles. Pode parecer chavão, mas são pessoas que largaram o discurso e foram à luta.
E a luta não é fácil, não. O que dizer quando você tem que lidar com a dura realidade submersa do Brasil? O que fazer quando você se depara com Jessica da Silva Barros (permitam-me omitir o verdadeiro nome da adolescente) e seu filho de dois anos e dois meses? Jessica tem 16 anos e está grávida do terceiro filho. Ela mora num barraco com os pais, mas passa alguns dias na rua também. Jessica tem problemas com drogas. A mãe, Josiane Maria da Silva, diz que prefere que ela fume cigarro, mesmo estando grávida, a ficar cheirando cola na rua. É uma vergonha que existam Jessicas no Brasil de 2006, século 21.
E ainda existem donas Anas Lúcias das Silvas. D. Ana é analfabeta. Ela vive com o marido e dez filhos num "barraco" de alvenaria, está grávida do 11º filho, tem 33 anos e o seu marido tem 32. Nenhum dos dois possui renda fixa. Ele é carroceiro e ela cuida dos filhos em casa. O casal sobrevive com uma renda de R$ 490. Antes da eleição, D. Ana estava procurando um político que quisesse trocar o seu voto por uma operação de ligadura de trompas. Segue a nossa vergonha.
No Recife, encontrei D. Alaíde Elias da Silva, a fundadora do Grupo Viva Rachid. O nome é uma homenagem a seu filho que foi infectado pelo vírus HIV através de uma transfusão de sangue quando tinha um ano e meio. D. Alaíde é neta de índia e foi criada num orfanato de freiras da igreja católica. A mãe, muito severa, trabalhava num hospital militar. Ainda na adolescência, Alaíde se casou e saiu de casa.
D. Alaíde teve três filhos, Ubiratan, Woody Phillips (homenagem do marido a Woody Allen) e Rachid, cujo nome foi escolhido num livro, e quer dizer fonte de luz, o honesto, o justo.
Rachid teve sarampo aos oito meses, uma gripe que virou pneumonia ao 14 meses e sofreu uma cirurgia aos 18 meses. Rachid teve que fazer uma transfusão de sangue e foi infectado com o vírus HIV. Daí pra frente, a saúde do garoto só piorou, era infecção atrás de infecção. D. Alaíde começou a desconfiar e pediu ao médico para fazer o teste de Aids. O resultado foi positivo. Ela só se lembra do médico dizer que Rachid tinha a mesma doença do Cazuza. "O ouvido apitava, eu não ouvia mais nada, estava desorientada." Mas ainda deu para entender o médico dizendo que a única coisa que eu poderia fazer era dar muito amor a Rachid.
D. Alaíde passou a reivindicar o direito de Rachid receber gratuitamente os caros medicamentos e ter o melhor tratamento possível nos hospitais públicos do Recife. A batalha gerou a semente da associação que leva o nome de seu filho que morreu em 1993. Hoje Alaíde é a mãe de todos os meninos do Viva Rachid.
Os governos poderiam fazer muito mais. Ou dar um basta na corrupção. Segundo matéria publicada pelo Congresso em Foco , leia mais, a corrupção custa por R$ 9,68 bilhões por ano ao país. Durma-se com uma roubalheira dessa.
Notícia ruim não falta. Em Governador Valadares, um garoto de 17 anos matou Maria Cristina da Silva, médica perita do INSS. Uma gangue que fraudava o instituto foi quem encomendou o assassinato. A médica pagou com a vida e o garoto recebeu R$ 500. Sem comentários.
O segundo turno vem aí, bom voto, se for possível. Esperemos que o Brasil 2007 seja um país digno para todos. Temos esperado por muito tempo. Se não for agora, pode ser amanhã ou 2010. Eu gostaria mesmo de votar na D. Alaíde ou em D. Maria da Conceição.
PS: Só para pensar. Aqui nos Estados Unidos, Jeffrey Skilling, ex-chefão da empresa norte-americana Enron, pegou 24 anos e quatro meses de cadeia por fraudes, o chamado crime do colarinho branco.
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