Márcia Denser
Certos comentários relacionados à minha coluna “Lobotomia’s movie”, somados a outros semelhantes que já vêm de longa data, nos leva a constatar os níveis estratosféricos a que chegou a despolitização e alienação da sociedade brasileira, implicando cegueira histórico-conjuntural do mundo devido à aceitação acrítica das teorias pós-culturalistas e suas explicações fragmentárias, seu fascínio retórico, o que leva à promoção inconsciente dos interesses do opressor, ora introjetado.
Como se se tratasse de mero etnocentrismo o fato de Hollywood propagar o way of life, ignorando outros povos, e isso pudesse ser comparado ao próprio desconhecimento dos brasileiros quanto ao que acontece e até onde fica o Mato Grosso do Sul, a Bolívia, Uruguai e Guianas (sic), como se a recíproca – a visão do nosso cinema a respeito de outras nações – fosse válida nesta discussão, como se tratasse de dar aos americanos direito de defender seus valores (sic), quem sabe em nome, digamos, duma imparcialidade jornalística talvez. Ora, me poupem.
Para começar, os filmes de Hollywood não defendem os valores, mas os interesses dos Estados Unidos, digo, do Império. Que não coincidem com os do resto do mundo. Por quê? Tentarei ser didática:¹
Os filmes e a televisão americanos são tanto base como superestrutura, são tanto economia como cultura e, junto com alimentos e armamentos, são os principais produtos de exportação norte-americanos. Mas os Estados Unidos não são apenas um país e uma cultura entre outras, há uma assimetria fundamental nas suas relações com todos os outros países do mundo. O significado dos acordos comerciais da Organização Mundial de Comércio (OMC) e do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta)² é que eles são passos fundamentais no esforço americano de solapar as políticas culturais do resto do mundo. A cultura de massa americana, associada com dinheiro e mercadorias, tem um prestígio que é prejudicial à produção cultural dos outros países, que é forçada ou a desaparecer, como acontece com a televisão e cinema locais, ou é cooptada e transformada a ponto de se tornar irreconhecível, caso da música.
É especialmente importante estabelecer uma distância irônica da retórica da liberdade – não apenas livre comércio, mas liberdade de expressão, de circulação de idéias e de propriedades intelectuais – que acompanha essa política: a liberdade das corporações norte-americanas (e outras) e de seu Estado-nação dominante não é a mesma coisa que nossa liberdade como indivíduos ou cidadãos, nem que a liberdade do nosso país.
Trata-se de um jogo literalmente sem vencedores no qual essa “liberdade corporativa” resulta na destruição da indústria cultural nacional de outros povos. O sucesso de tais políticas de livre comércio em entretenimento (via desregulação e desmanche de subsídios e leis de proteção locais) significa a extinção gradual de novas produções artísticas e culturais nacionais em todos os lugares do mundo, do mesmo modo que o livre trânsito do cinema americano no mundo significa o fim dos cinemas nacionais em outros países.
PublicidadeLivre mercado é destruição dos concorrentes. Um “livre mercado” que só existe para os Estados Unidos, uma vez que tal “liberdade” é garantida por um poder bélico ilimitado em cujo cerne está a necessidade de expansão econômica – a lógica do capital só atua no sentido dum impulso irresistível de expansão e aumento de acumulação que não podem ser freados, suspensos ou reformulados, sem causar dano mortal ao próprio sistema.
Assim, deve ficar claro que o triunfo do cinema hollywoodiano não é apenas um triunfo econômico, mas político e formal. O desaparecimento no mundo inteiro dos filmes experimentais dos anos 60 e 70 é também uma morte do moderno, na medida em que os cineastas independentes em todo mundo eram guiados por um certo modernismo – ideológico, utópico. Infelizmente é também uma morte do político e uma alegoria do fim da possibilidade de se imaginar alternativas sociais radicalmente diversas do life style americano. Porque o cinema político dos anos 60 e 70 confirmava a existência dessa possibilidade real ao atestar que a invenção de uma nova estética era equivalente à descoberta de relações sociais e formas de viver no mundo radicalmente novas.
São estas possibilidades – cinematográficas, estéticas, políticas e sociais – que desapareceram do horizonte na medida em que se consolidou o domínio cultural dos Estados Unidos sobre as outras nações.
E confirmando tudo o que acabo de dizer, algures Lutero Mainardi escreve que “o cinema brasileiro nem devia existir”.
Realmente, o sujeito não é autor do próprio discurso, virou objeto do discurso do outro: ele “é falado” pela língua do opressor.
¹O didatismo se fundamenta em Frederic Jameson, A cultura do dinheiro, Petrópolis, Vozes, 2002.
² A sigla desse acordo celebrado entre os Estados Unidos, o Canadá e o México vem do inglês, North American Free Trade Agreement.
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